Libertadores

Os duelos titânicos que forjaram a rivalidade entre Flamengo e Grêmio nos anos 80

Para Flamengo e Grêmio, a semifinal da Copa Libertadores não guarda apenas o direito de se classificar à final. O duelo parece trazer consigo um simbolismo maior, entre duas equipes que se reivindicam como donas do melhor futebol do Brasil. Antes de ganhar a chance de disputar a taça continental, o vencedor tentará confirmar a grandeza de seu jogo. Um reconhecimento pelo qual tricolores e rubro-negros já brigaram palmo a palmo no passado.

Afinal, com estilos diferentes, Flamengo e Grêmio podem ser colocados como os melhores times do Brasil na primeira metade da década de 1980. Ambos conquistaram a Libertadores. Ambos conquistaram o Campeonato Brasileiro. E, como tinha que acontecer, ambos mediram forças em confrontos mastodônticos no período. Os rubro-negros levaram o seu segundo título no Brasileirão ao desbancarem justamente os tricolores. O troco gremista seria duplo, eliminando os flamenguistas por duas vezes na Libertadores – e, na última delas, há 35 anos, valendo vaga direta na final.

Aproveitando o duelo desta quarta-feira, relembramos os três episódios, que ajudaram a fazer de Flamengo x Grêmio uma grande rivalidade nacional nos anos 1980.

A final do Brasileirão de 1982

Flamengo e Grêmio haviam se cruzado algumas vezes desde a ampliação dos campeonatos nacionais. Eram adversários costumeiros no Robertão e seguiram se pegando praticamente todos os anos no Brasileiro após 1971. A história ainda privava os clubes de se encararem em mata-matas. O que aconteceu justamente na decisão de 1982, colocando frente a frente os dois campeões mais recentes da competição, que não haviam duelado entre si em suas campanhas vitoriosas. Enquanto os gremistas ficaram a critérios de desempate de enfrentar o Fla na semifinal de 1980, os rubro-negros pararam nas quartas de final em 1981.

Então campeão nacional, o Grêmio exibiu o seu favoritismo principalmente nos mata-matas da Taça de Ouro de 1982, após um início ruim na competição. Manteve a invencibilidade a partir das oitavas de final, derrotando apenas adversários de peso. Passou por Vasco, Fluminense e Corinthians até atingir a nova final. Já o Flamengo, campeão mundial e da Libertadores, fez uma campanha superior na primeira fase e seguiu abrindo caminho nos mata-matas, embora tenha sofrido uma derrota nas oitavas para o Sport. Superou também Santos e Guarani na sequência, para retornar à decisão após um ano de hiato.

Treinado por Paulo César Carpegiani, o Flamengo preservava aquela mesma escalação que os rubro-negros se acostumaram a falar de cor. O time titular dos três jogos contra o Grêmio é praticamente idêntico ao que derrotou o Liverpool em Tóquio quatro meses antes, com exceção da presença de Figueiredo no lugar de Mozer no miolo da zaga. De resto, o esquadrão estava completo, com Raul, Leandro, Andrade, Adílio, Zico, Nunes e os demais que ocupam o imaginário da torcida quase quatro décadas depois.

O Grêmio igualmente mantinha Ênio Andrade à frente de seu timaço. Sustentava a base campeã nacional em 1981, mas também via despontar alguns jogadores que expandiriam as fronteiras do clube meses depois. Apesar de certa fama quanto à sua “raça”, também sobrava técnica naquele esquadrão, de grandes contratações e boas promessas. A fortíssima equipe tinha Leão, De León, Batista, Paulo Isidoro, Tarciso e Baltazar. Uma penca de jogadores com nível de seleção, que ainda contaria com a presença de garotos como Paulo Roberto e um imberbe Renato Portaluppi, presente justamente na terceira partida.

Por ter feito a melhor campanha a partir da segunda fase, o Grêmio ganhou o direito de realizar a segunda partida no Olímpico e, em caso de dois empates ou uma vitória para cada lado, também de disputar o terceiro jogo em casa. De qualquer maneira, os discursos antes do duelo pregavam máximo respeito. “O Grêmio é um time de força, de competição, com boa preparação física. O estilo do Flamengo é leve, rápido, de velocidade com a bola. Mas os dois estilos são vantajosos, tanto que ambos estão nas finais. Enganam-se os que pensam que a vitória de um dará a vitória do estilo a ser copiado no Brasil e que o outro está errado. As duas equipes e os dois estilos estão corretos”, declarou Ênio Andrade, antes do primeiro duelo.

Carpegiani, por sua vez, falava sobre o alto nível das equipes: “Não será um jogo fácil, todos sabem. O Grêmio possui um elenco de alto nível e tem condições de conquistar novamente o Brasileiro. Acontece que vejo o Flamengo com muita disposição e praticando um tipo de futebol solidário, com jogadores renomados não se importando em marcar e dividindo todas as jogadas. Voltamos a jogar o futebol que nos levou a conquistar o título mundial”.

Durante o primeiro jogo, o Grêmio confirmou a fama de equipe sólida e bem armada. Conseguiu segurar o empate por 1 a 1 no Maracanã, diante de 138 mil pagantes. Não foi uma partida vistosa, cabe dizer. Os rubro-negros mantiveram o domínio, mas pouco conseguiram criar contra a forte marcação tricolor, com De León e Batista em noite inspirada. Telê Santana, aliás, acompanhava as finais também para sanar uma de suas últimas dúvidas antes da convocação à Copa do Mundo de 1982. Segundo a revista Placar da época, a boa atuação do volante gremista o deixava um passo à frente de Adílio rumo ao Mundial.

Apesar da dedicação à marcação, os gremistas quase arrancaram a vitória no Rio de Janeiro. Os gaúchos abriram o placar aos 38 do segundo tempo, quando, a partir de um contra-ataque, Tonho aproveitou o rebote de Raul e balançou as redes. O empate do Fla veio no apagar das luzes, já aos 44. Júnior fez a jogada pela esquerda e cruzou para Zico, que dominou na raça, antes de mandar no canto de Leão. Os flamenguistas reafirmavam a máxima de equipe que não sucumbia facilmente. Enquanto isso, o Galinho chegava aos 21 tentos naquele Brasileirão e assumia a artilharia isolada.

As declarações após a partida esquentaram o clima da decisão para o confronto no Olímpico. Zico e Carpegiani criticaram a “estratégia covarde” do Grêmio, o que provocou revolta dos tricolores. “Sei que os torcedores do Grêmio ficaram um pouco revoltados com as declarações no vestiário do Flamengo, mas não adianta fazer guerra de nervos. Dentro do campo, ninguém vai ganhar da gente no grito. Não tivemos a intenção de ofender, mas se o Grêmio resolver vestir a carapuça, o problema é somente dele. Nós pretendíamos dizer que a tática do adversário foi covarde, não seus jogadores”, explicou Zico. Na chegada a Porto Alegre, os jogadores do Flamengo foram recebidos por muitos torcedores do Internacional, numa cena peculiar de apoio aos adversários dos rivais.

Ênio Andrade também evitava o clima bélico: “Não tem cabimento se eu iria me preocupar com as declarações de Carpegiani e Zico sobre meu esquema. Tenho meus conceitos e vou segui-los na medida do possível, nem que para isso tenha que brigar com meio mundo. Entendi a intenção do Flamengo, que pretendia que nos abríssemos em Porto Alegre e fôssemos para o ataque, permitindo facilidades na retaguarda. Vamos jogar da mesma maneira, mas com um pouco mais de atenção para não deixar que se repita o que aconteceu no Maracanã”.

E o empate prevaleceu também no segundo jogo, diante de 74 mil torcedores no Olímpico. O placar de 0 a 0, entretanto, escondeu uma partida bem mais empolgante do que o encontro no Rio de Janeiro. Desta vez as duas equipes criaram várias oportunidades de gol e saíram para o ataque. Após o domínio inicial do Flamengo, o Grêmio cresceu, orquestrado pelo meia Vilson Tadei. Quase os anfitriões saíram em vantagem no início do segundo tempo: Baltazar carimbou a trave, além de forçar grande defesa de Raul. Os rubro-negros acordariam pouco depois e também tiveram a chance de vencer na segunda etapa. Leão segurou as pontas sob as traves, enquanto Paulo Roberto ainda salvou uma bola em cima da linha. A definição do título acabaria reservada ao terceiro encontro, em Porto Alegre.

“Foi um jogo igual, onde mostramos que sabemos jogar ofensivamente. Pena que nossos atacantes não conseguiram finalizar as boas jogadas que criamos. Além disso, o goleiro Raul mostrou muita categoria, salvando pelo menos dois gols certos”, avaliou Ênio. Ao que Carpegiani complementou: “É claro que o Grêmio esteve perto de nos derrotar e isso vem somente provar que o time gaúcho teve méritos para chegar à final do Campeonato Brasileiro. Tivemos algumas pequenas falhas, mas temos que creditar à atuação do adversário as dificuldades que encontramos nesse jogo”.

A definição da taça aconteceu em 25 de abril, diante de 62 mil torcedores no Olímpico. O Flamengo prometia uma equipe mais agressiva, com o avanço dos laterais, mas Zico recuado para atrair Batista. Já o Grêmio tinha como principal estratégia a força no jogo aéreo, contando com as ótimas condições físicas de seus jogadores. Por conta de uma gripe sofrida por Tarciso, Renato entrou na equipe titular durante o último coletivo e oferecia sua vivacidade na ponta direita. “O fato de enfrentar o Flamengo não me assusta, mas nós respeitamos seu futebol e esperamos que eles também nos respeitem”, apontou o novato, então com 19 anos.

Aquela partida, contudo, provocaria sensações contrastantes nas duas torcidas. E o futebol seria, mais uma vez, eclipsado por uma atuação ruim da arbitragem. Sorteado para o jogo, o paulista Oscar Scolfaro gerou muita controvérsia antes mesmo que a bola rolasse. O juiz chegou a ficar afastado da Taça de Ouro por suas atuações ruins, inclusive beneficiando o Flamengo nas oitavas de final contra o Sport. Segundo o Jornal dos Sports, os jogadores de ambos os clubes contestaram a sua nomeação, embora a bronca maior fosse dos gremistas. Era acusado, inclusive, de estar fora de forma.

O Flamengo encaminhou sua vitória por 1 a 0 logo nos primeiros minutos. E também com motivos para reclamar do árbitro. Logo no primeiro ataque, numa bola que já estava em seus braços, Leão acertou uma cotovelada em Nunes. Scolfaro sequer mostrou cartão ao goleiro, ainda que o rubro-negro aparecesse com sangue na boca. O centroavante jurou sua vingança e a alcançou na bola. O Fla abriu o placar aos dez minutos, em jogaçada de Zico. Andrade roubou a bola e passou ao camisa 10, que superou Batista e deu uma enfiada por entre as pernas de Vilson Tadei. Conectou Nunes, que bateu rasteiro dentro da área e venceu Leão.

Jogando para frente, o Grêmio tentava reduzir o prejuízo. O Flamengo se defendia e incomodava nos contra-ataques. Já na reta final da primeira etapa, as chances dos tricolores se tornaram mais claras. Tonho chegou a acertar a trave de Raul, que também começava a acumular grandes defesas. Além disso, os gremistas reclamaram bastante de um pênalti de Leandro em Tonho, que o árbitro não marcou. Era uma partida extremamente pegada, inclusive com trocas de agressões, que Scolfaro deixava passar.

O início do segundo tempo seria mais intenso, entre a pressão do Grêmio e as chances desperdiçadas pelo Flamengo na hora de matar o jogo. O lance mais lembrado pelos tricolores se daria aos 10 minutos. Numa disputa após cobrança de escanteio, Raul abafou o chute duas vezes, mas a bola subiu e a disputa foi para pequena área. Com um pelotão de jogadores das duas equipes em cima da linha, os gremistas tentavam forçar a bola para dentro – numa disputa na qual a pelota já tinha batido no braço de outros jogadores. E quando ela realmente passou a linha, Andrade apareceu dentro da meta para tirar com a mão. Scolfaro não marcou, assim como o assistente Romualdo Arppi Filho, para revolta dos gaúchos.

Apesar da reclamação, o Grêmio seguiu em cima e pressionava principalmente nas bolas alçadas na área. O empate forçaria a prorrogação. Porém, o time da casa não conseguiu passar pela zaga do Flamengo. Leão chegou a conter alguns ataques dos rubro-negros, mas o verdadeiro herói foi Raul, que colecionou milagres. Em uma das defesas mais lembradas, conseguiu pegar uma tentativa à queima-roupa de Baltazar, aos 20 minutos. Além das excelentes intervenções, o veterano também ajudou a esfriar o ímpeto gremista com suas ligações diretas ao ataque. Segurou o placar mínimo, que rendeu a volta olímpica dos flamenguistas dentro do Olímpico.

“Raul foi o dono do jogo e, graças às suas grandes defesas, o Flamengo ganhou o título. Fez cinco defesas importantíssimas e, nos momentos de maior dificuldade, soube tranquilizar o time. Não à toa, ao término do jogo todos os companheiros se dirigiram para abraçá-lo”, avaliou o Jornal dos Sports. Andrade, ironicamente, também foi muito elogiado pela maneira como perseguiu Paulo Isidoro, principal nome no meio-campo gremista.

Após a partida, Carpegiani exaltou o elenco do Flamengo: “É sempre bom conquistar um título. Estou muito feliz mesmo e dedico esta conquista a todos os jogadores. Eles são os principais responsáveis por esta brilhante campanha. O Flamengo conquistou a Taça de Ouro derrotando praticamente todos os grandes clubes do Brasil. No jogo passado, Batista fechou muito bem a entrada da área. Desta vez, coloquei Zico um pouco mais atrás para atraí-lo. O Grêmio caiu nesta armadilha e o gol nasceu nessa indecisão”.

Já Ênio Andrade, por mais que se queixasse da arbitragem, reconheceu que faltou mais precisão ao Grêmio ao longo da tarde: “O Grêmio foi melhor. Tivemos seis oportunidades de gol e não conseguimos marcar. O Flamengo teve apenas duas e fez um gol. Futebol é isso. Nas três partidas, fomos melhores pelo menos nas duas aqui no Olímpico. O árbitro foi muito mal, esteve sempre no meio-campo, não conseguia acompanhar as jogadas de perto. O negócio agora é continuar o trabalho. A Taça de Ouro é passado”.

A fase de grupos da Libertadores de 1983

Os reencontros entre Flamengo e Grêmio estavam marcados desde a decisão do Brasileiro. As duas equipes se classificaram à Copa Libertadores de 1983 e figuravam no mesmo grupo durante a primeira fase, ao lado dos representantes bolivianos, Bolívar e Blooming. Apenas o líder da chave conquistaria a vaga no triangular semifinal, o que aumentava o caráter decisivo dos embates entre os compatriotas.

A primeira partida aconteceu em 4 de março, no Olímpico, quase um ano depois das decisões de 1982. E as duas equipes sofreram mudanças naquele intervalo, inclusive trocando figurinhas entre si. Por conta de atritos com Carpegiani, o Flamengo acabou se desfazendo de Nunes e Tita. O meio-campista saiu por empréstimo justamente ao Grêmio. Na contramão, quem chegou à Gávea foi o centroavante Baltazar, novo homem de referência no ataque rubro-negro.

O Grêmio tinha sofrido mudanças mais sensíveis desde o vice-campeonato nacional. A começar pelo comando técnico, com a saída de Ênio Andrade durante a Libertadores de 1982. No início de 1983, a equipe seria assumida pelo jovem Valdir Espinosa, que iniciava sua carreira como treinador. Outros medalhões do elenco também partiram – incluindo Leão, Batista, Tadei e Paulo Isidoro. Os tricolores contavam com uma equipe renovada, sob a liderança de Hugo de León. O centroavante César, trazido do Benfica, era a grande contratação até aquele momento. No Flamengo, a espinha dorsal seguia praticamente a mesma, a despeito das saídas de Nunes e Tita. O clube também resolveu pendências contratuais com Figueiredo, Lico e Júnior.

Antes da primeira partida, o atacante Tonho avisava: “Se o Flamengo espera encontrar aquele adversário na base da velocidade e da força física, pode se dar muito mal, porque nosso time agora está muito diferente, com muito mais cérebro e habilidade”. Enquanto isso, Carpegiani declarava que estava vacinado pelas mudanças. O treinador rubro-negro precisou se virar sem Júnior, lesionado para aquele duelo. Enquanto isso, o Grêmio não teria Renato, já titular absoluto com Espinosa, mas que não estava 100%. O ponta seria suplantado pelo veterano Tarciso. Além do mais, existia uma atenção especial ao redor de Tita e Baltazar. Os dois garantiam não existir qualquer emoção diferente em enfrentar o ex-clube.

O Olímpico recebeu uma partidaça na primeira rodada, que terminou com o empate por 1 a 1. A “Lei do Ex”, aliás, não demorou a acontecer. E o primeiro gol da noite seria justamente de Baltazar, herói no Brasileirão de 1981, agora com a camisa rubro-negra. Foi um golaço do centroavante. Depois da bola roubada por Zico, o Artilheiro de Deus dominou dentro da área, aplicou um chapéu no zagueiro gremista Leandro, ajeitou de cabeça e definiu com a parte de fora do pé. O goleiro Remi nem conseguiu reagir, diante de tamanha obra de arte. Baltazar não se conteve e tratou de comemorar a pintura na frente da antiga torcida.

O empate não saiu na sequência porque Tita carimbou a trave. A partida no Olímpico continuou completamente aberta, com os dois times criando suas chances de balançar as redes. Raul voltou a se agigantar contra o Grêmio e realizava ótimas defesas, enquanto o gremista Leandro salvou um gol de Adílio em cima da linha pouco antes do intervalo. Na volta à segunda etapa, o Fla cresceu e Zico chegou a mandar uma cobrança de falta no travessão, enquanto Baltazar ficou próximo de seu segundo.

A reação do Grêmio aconteceria a partir da entrada de Renato, aos 17 minutos. O ponta acertou a trave logo em uma de suas primeiras jogadas e incendiou os tricolores, que pressionavam. Raul voltou a trabalhar bastante e os gaúchos ficaram na bronca com o árbitro Arnaldo César Coelho, que não marcou um pênalti sobre Bonamigo. Ainda assim, o empate por 1 a 1 seria decretado aos 35. Redimindo-se do erro no gol rubro-negro, De León apareceu no ataque e acertou um chutaço na gaveta, sem chances a Raul. Em sua coluna no Jornal do Brasil, João Saldanha classificava a partida com um “resultado justo”. Já o Jornal dos Sports chamava a peleja de “sensacional”.

As semanas seguintes, no entanto, guardariam uma montanha-russa ao Flamengo. Diante das oscilações no Brasileirão e das críticas que recebia por suas escolhas, Carpegiani comunicou à diretoria seu desejo de sair. Aceitou uma proposta do Al-Nassr. Carlinhos assumiu a equipe por um breve período e os rubro-negros sentiram a crise durante a viagem à Bolívia pela Libertadores. Perderam diante do Bolívar e só empataram com o Blooming, em resultados bastante custosos à sequência na competição continental.

Carlos Alberto Torres assumiu o time e alavancou os resultados. O Flamengo pegou embalo no Campeonato Brasileiro e, em maio, conquistou o seu terceiro título nacional ao derrotar o Santos na decisão. Porém, não conseguiu tirar o prejuízo na Libertadores. O Grêmio voltou com duas vitórias da Bolívia e se isolou na liderança do grupo. Por mais que o Flamengo tenha goleado Blooming e Bolívar no Maracanã, o Tricolor também cumpriu sua parte no Olímpico contra os dois estrangeiros e confirmou a classificação antecipada.

Assim, quando os times se reencontraram no Rio de Janeiro para a última rodada da chave, o Grêmio já tinha confirmado seu lugar no triangular semifinal. Campeão brasileiro duas semanas antes, o Flamengo estava muito mais preocupado com o futuro de Zico. O craque recebera a proposta da Udinese, mas o Fla tentava segurá-lo. Contra um adversário desinteressado e também desfalcado, o time de Valdir Espinosa confirmou a excelente campanha na fase de classificação com a vitória por 3 a 1.

Apenas 6 mil torcedores estiveram presentes no Maracanã. E a torcida se permitiu até mesmo festejar o gol de Tita, que naquele momento era cotado para voltar ao Rio de Janeiro, como substituto de Zico. O meia correspondeu e assinalou uma pintura aos oito minutos. Bateu de fora da área e mandou na gaveta de Raul. Aos 15, os tricolores já ampliaram: Caio foi lançado em profundidade e, na saída do goleiro, não perdoou. O tento foi importante na afirmação do recém-contratado centroavante, que ganharia a disputa com César pela titularidade. Já aos 26, Osvaldo deixou o seu, no que poderia se transformar em uma goleada histórica.

Sem qualquer ânimo, o Flamengo parecia um mero sparring em campo. E o Grêmio também decidiu tirar o pé durante o segundo tempo, aproveitando sua vantagem. Como a vaga estava garantida, não era necessário se desgastar nos 45 minutos finais. O tento de honra do Fla no enlameado gramado só aconteceu aos 25, numa bola rebatida que sobrou para Elder emendar o chute rasante da entrada da área. Com 11 pontos em 12 possíveis, o Tricolor surgia como uma força à reta final da Libertadores.

Tita saiu de campo ovacionado pelos torcedores do Flamengo e retribuiu. “Em dezembro, estarei de volta. Vou cumprir meu contrato até o final. Estou feliz no Grêmio. Sou tratado com muito carinho e já posso sentir a tristeza dos torcedores com a aproximação da minha volta. Minha estada no Sul é uma experiência incrível”, afirmou o meia, na saída de campo. Seria não só incrível, como também histórica. Os gremistas passaram por América de Cali e Estudiantes no triangular semifinal, antes de derrotar o Peñarol na decisão. Depois, Tita ainda levaria mais um Mundial. Embora não tenha se consagrado como herói naqueles títulos, seria um nome importante aos tricolores. A afirmação do clube era inquestionável.

O triangular semifinal da Libertadores de 1984

Campeão da Libertadores, o Grêmio entrou diretamente no triangular semifinal da Copa Libertadores de 1984. Enquanto isso, o Flamengo precisaria encarar outra vez a fase de grupos, após o título brasileiro. Desta vez, os rubro-negros não deram margem ao azar. Numa chave complicada, que também tinha Santos, América de Cali e Junior de Barranquilla, a equipe treinada por Claudio García teve um aproveitamento excelente. Venceu cinco jogos e empatou apenas um, na visita a Cali. Além do mais, o Fla anotou impressionantes 19 gols – com direito a goleadas por 4 a 1 e 5 a 0 sobre os santistas. Era time para bater de frente com os gremistas e sonhar com o novo título continental.

O Flamengo também atravessara mudanças drásticas desta vez. Carlos Alberto Torres passou poucos meses no cargo e terminou demitido em agosto de 1983, após uma derrota para o Botafogo na Taça Guanabara. Claudio García chegou em setembro e liderou a ótima campanha na fase de grupos da Libertadores, mas não resistiu à eliminação no Brasileirão de 1984 – após a vitória por 2 a 0 no Rio, o Corinthians avançou com goleada por 4 a 1 no Morumbi. Durante o início de junho, semanas antes que o triangular semifinal começasse, quem assumiu os rubro-negros foi Zagallo, de volta à Gávea 14 anos depois de sua primeira passagem como treinador.

A equipe também enfrentou uma ampla reformulação. Zico realmente havia se transferido à Udinese em 1983, enquanto Júnior seguiu ao Torino após a primeira fase da Libertadores de 1984. Raul pendurara as luvas no final da temporada anterior. O zagueiro Marinho e o meio-campista Vitor também saíram, sem tanto espaço na equipe titular. Já no ataque, Baltazar retornaria ao Grêmio, no negócio que levou Tita de volta ao Rio de Janeiro, ostentando a faixa de campeão do mundo.

Além do meia, Nunes seria outro a retornar para os rubro-negros, após um breve período com o Botafogo. E a lista de contratações tinha como grande destaque o goleiro Ubaldo Fillol, campeão do mundo com a Argentina em 1978, que chegava reconhecido como um craque digno para substituir Raul. A lista de novidades incluía ainda desde 1983 boas opções como o centroavante Edmar e o ponta João Paulo, bem como garotos da base, com menção principal ao ascendente Bebeto e ao lateral Adalberto (o pai de Rodrigo Moreno).

O próprio Grêmio não conseguiu preservar totalmente a sua base campeã mundial. A diretoria não atendeu a demanda financeira de Valdir Espinosa para renovar o seu contrato e o treinador deixou o Olímpico, substituído por Carlos Froner. Veteranos contratados às vésperas do Mundial, Mário Sérgio e Paulo Cézar Caju não ficaram, enquanto o goleiro Mazarópi entrou em litígio para ampliar seu vínculo com o clube e só retornou em 1985. Trazido do Palmeiras, João Marcos era o novo dono da meta. De resto, os destaques já estavam em Porto Alegre – incluindo De León, Renato e Caio.

Antes do primeiro encontro, Carlos Froner afirmava: “São dois campeões do mundo. O estilo do Grêmio já é conhecido. Jogamos forte e aplicados taticamente. Vamos atacar o Flamengo, pois só a vitória nos interessa. Este jogo é fundamental para o Grêmio nos próximos meses. Sou pioneiro no estilo de atacar e defender em bloco. Não sei se os jogadores do Flamengo, acostumados a atacar, terão tranquilidade para armar um sistema defensivo”. Zagallo, do outro lado, jogava o favoritismo aos gaúchos por “jogarem em casa, não terem jogadores contundidos e seguirem com o mesmo técnico desde o início do ano”. O veterano havia trabalhado em alguns amistosos, mas faria sua estreia oficial à frente do clube justamente na Libertadores.

A abertura do triangular semifinal aconteceu em 26 de junho, numa gélida noite em Porto Alegre. Num frio de apenas 3°C, que se unia à chuva e aos ventos intensos, apenas 19 mil torcedores compareceram às arquibancadas do Olímpico. E, tanto quanto a temperatura, o Grêmio também impôs um penoso castigo ao Flamengo com a goleada por 5 a 1. Curiosamente, os rubro-negros decidiram atuar de mangas curtas naquela ocasião. Depois da partida, Zagallo chegou a declarar que o frio teve influencia na derrota.

Mais prejudicial que o inverno cruel no Rio Grande do Sul, entretanto, foram os desfalques na zaga do Flamengo. A equipe precisou se virar com as ausências de Leandro e Figueiredo. A linha defensiva jovem, liderada por Mozer, não resistiu ao entrosamento e à potência física do Grêmio. O primeiro gol saiu aos cinco minutos, numa bola que ficou viva na área até Osvaldo emendar o chute. Tita conseguiu empatar aos 11, aproveitando um lançamento para emendar de primeira, mas logo os tricolores iniciaram o seu atropelamento.

O segundo gol veio aos 23 minutos, num cruzamento de Tarciso que Fillol não alcançou e Caio completou livre. Antes do intervalo, Osvaldo subiria sozinho para marcar o terceiro, numa cabeçada espetacular. Renato faria o quarto no segundo tempo, em mais uma bola pelo alto. Por fim, caberia a Tarciso fechar o caixão. A zaga saiu jogando errado e, após a roubada de bola, o veterano só encobriu Fillol. Enquanto Osvaldo terminou como destaque natural, pelos dois gols, Renato também recebeu elogios pelo excelente papel desempenhado na armação. De volta após um período com a Seleção, o craque tinha a sua saída especulada, com uma proposta do Milan.

“Falhamos muito na defesa, mas não sou treinador que costuma colocar a culpa nos jogadores. O Grêmio é um time experiente, que joga junto há algum tempo e soube aproveitar nossas falhas, principalmente pelas pontas. Agora é levantar a cabeça e tratar de vencer os jogos restantes”, analisou Zagallo, depois da partida. A sorte do Flamengo é que, segundo o regulamento da Libertadores na época, o saldo de gols não era inicialmente critério de desempate para determinar o classificado à final.

A outra equipe do grupo era a surpreendente Universidad de Los Andes, da Venezuela. Ambos os brasileiros cumpriram sua parte na visita aos azarões. Enquanto o Flamengo venceu por 3 a 0, com dois gols de Tita, o Grêmio anotou 2 a 0 no placar, cortesia de Renato e Caio. O reencontro dos favoritos no Maracanã aconteceu em 7 de julho. A obrigação da vitória era toda dos rubro-negros, já que o empate praticamente garantia a classificação tricolor. O time de Zagallo correspondeu.

Leandro e Figueiredo estavam de volta à defesa do Flamengo, o que aumentava a confiança da equipe. Além disso, uma das novidades no ataque era Bebeto, após a lesão de Edmar no primeiro jogo. Os jogadores rubro-negros tratavam a goleada anterior como um acidente. “O Flamengo não perde esse jogo. Atuei no Grêmio e sei que é um time experiente, que ganhou muita moral depois de conquistar a Libertadores, mas o Flamengo já conquistou todos esses títulos e tem as condições de vencer”, dizia Tita. A diretoria prometeu um bicho gordo, como motivação ao elenco. Zagallo nem realizou treino tático na véspera, dando apenas um rachão.

Do outro lado, o Grêmio afirmava que não jogaria na defesa para arrancar o empate. Carlos Froner prometia aproveitar a boa fase de seus atacantes para agredir o adversário. “O Grêmio está embalado, disposto a obter logo a classificação. Portanto, vamos jogar para ganhar”, afirmou Renato Portaluppi, antes da partida. Os tricolores repetiram a mesma escalação da goleada no Olímpico. Só não obtiveram o mesmo resultado.

Ciente de sua tarefa, o Flamengo atuou com muita garra e construiu a vitória por 3 a 1, diante de 38 mil torcedores no Maracanã. Depois de um início mais paciente, os cariocas partiram para cima e o primeiro gol saiu aos 24 minutos, numa pintura de Andrade. O meio-campista arriscou de longe e mandou a bola na gaveta de João Marcos. Adílio ainda perdeu um gol feito, antes que Bebeto ampliasse aos 41. João Marcos soltou o rebote após uma cobrança de falta e Elder cruzou a sobra na cabeça do garoto, oportunista.

Pois a estrela de Bebeto brilharia mais uma vez na volta ao segundo tempo, marcando o terceiro aos dez minutos – pouco depois de Renato forçar uma grande defesa de Fillol. João Paulo puxou o contra-ataque e entregou para o jovem atacante bater às redes vazias. Mesmo com a lesão de Figueiredo no primeiro tempo, o Fla se segurou bem na defesa, com Leandro e Mozer formando o miolo da zaga. O gol de honra dos gremistas saiu aos 20, com o substituto Guilherme Macuglia cabeceando um escanteio cobrado por Renato.

“Aquela derrota em Porto Alegre estava atravessada na minha garganta. O frio era de rachar e eu estava muito gripado. Ainda estou me recuperando, mas hoje mostramos nosso futebol”, afirmou Bebeto, depois da partida. Já Renato, que na época tinha a irônica fama de não se dar bem no Rio de Janeiro, se conformava: “O importante é que o terceiro jogo não será neste estádio. Aqui eu não consigo desencantar”.

De fato, o terceiro jogo aconteceria. O Grêmio venceu a Universidad Los Andes por 6 a 1 no Olímpico, com dois gols de Tarciso e dois de Guilherme. Enquanto isso, o Fla cumpriu sua parte no Maracanã ao bater os venezuelanos por 2 a 1, tentos de Tita e Adílio numa suada virada contra os indigestos visitantes. Os gremistas encerraram a campanha com saldo de +9 gols no triangular, contra +2 dos rubro-negros. Ainda assim, as duas equipes precisaram disputar uma partida extra. O consolo aos tricolores era que, caso o empate prevalecesse no Pacaembu, eles tinham a vantagem na classificação.

A arma de Zagallo para ameaçar o Grêmio era Nunes, o autor do gol decisivo na final em 1982. Reintegrado ao elenco após período afastado, o centroavante começaria o jogo no banco de reservas, mas relembrava suas glórias para intimidar os tricolores. “Sou um atacante que procura aproveitar os espaços que os zagueiros costumam deixar. Lembro bem daquela final, o De Leon estava saindo para apoiar o ataque. Fiquei atento e, quando o Zico pegou a bola, me desloquei rapidamente. Sou experiente e sei muito bem que o Grêmio está preocupado com nosso time. Os jogadores sabem que não podem vacilar um minuto sequer, porque o Flamengo tem jogadores para decidir a qualquer momento”, contava.

O Pacaembu recebeu 53 mil torcedores para o duelo entre os melhores times do Brasil. O Grêmio mantinha a sua base principal, com a entrada de Casemiro na lateral direita e a confirmação de Guilherme Macuglia no ataque. Já o Flamengo, ainda sem Figueiredo, vinha com Bebeto outra vez na frente, ao lado de Elder e João Paulo. A tensão, todavia, resultaria em uma partida bastante brigada e com poucas chances de gol. O empate por 0 a 0 perdurou durante os 90 minutos, assim como nos 30 minutos extras de prorrogação. Como o regulamento não previa pênaltis, o Tricolor avançou à sua segunda final consecutiva.

Melhor em campo, o Flamengo errava demais na conclusão das jogadas. Dependeu de Fillol para salvar a primeira chance clara do Grêmio, em chute cruzado de Guilherme. A principal resposta dos rubro-negros no primeiro tempo viria num cruzamento perfeito para Tita. Bebeto se antecipou e acabou mandando para fora. No intervalo, o garoto daria lugar a Nunes e o centroavante ofereceria mais movimentação ao ataque. Ainda assim, o Fla perdoou nas boas oportunidades que criou. Com ataques mais esparsos, o Tricolor veria um tento bem anulado, enquanto Renato desperdiçou a chance de matar o duelo diante de Fillol.

O jogo seguiu à prorrogação, o que ampliou o drama no Pacaembu. Precisando do gol, o Flamengo foi com tudo ao ataque, mas não teve organização. Os muitos cruzamentos facilitaram o serviço da defesa do Grêmio, que jogava com o regulamento sob o braço. Ao final, o herói seria o goleiro João Marcos. O camisa 1 gremista realizou duas grandes defesas contra Tita no primeiro tempo extra e garantiu a classificação. “O responsável pela manutenção do empate foi João Marcos. Seguro, tranquilo e, o que é importante, contando com a sorte”, analisou o Jornal do Brasil, dando nota 10 ao arqueiro.

“Desde o início, ficou claro que os dois times esperavam por um jogo de 120 minutos e, como sempre acontece quando há a possibilidade de uma prorrogação, a partida tem uma única filosofia: os dois times marcando muito e evitando a todo custo que o adversário faça gol primeiro. E como o Grêmio tinha a vantagem do empate, mostrou-se mais aplicado na defesa desde o início”, escreveu João Saldanha, na crônica do Jornal do Brasil. Zagallo reconhecia a força do adversário: “Nunca vi um time com tanta determinação em campo como o Grêmio hoje. Marcou bem no campo todo e foi perigoso nos contra-ataques”.

A decisão, em contrapartida, guardaria a consagração do Independiente em seu sétimo título continental. O Grêmio perdeu por 1 a 0 no Olímpico, gol de Jorge Burruchaga. Já em Avellaneda, o empate por 0 a 0 seria suficiente para confirmar o título dos argentinos. Campeão da Libertadores novamente em 1995, o Tricolor passou a reviver os seus maiores sonhos sob as ordens de Renato Portaluppi. E um Flamengo de futebol ofensivo, como aquele dos anos 1980, ressurge como desafio. A memória permanece viva às duas torcidas.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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