Gigantes em rota de colisão, Flamengo e Palmeiras farão uma final de Libertadores inevitável
Os dois polarizaram os principais títulos do futebol brasileiro nos últimos cinco anos e era apenas questão de tempo (e de um pouquinho de sorte) para se enfrentarem mano a mano em 90 minutos de tudo ou nada

O lateral foi lançado à área. Era uma das armas daquele Palmeiras treinado por Cuca. A defesa do Flamengo afastou, mas Gabriel Jesus recolheu na entrada da área. Abriu à perna direita e bateu rasteiro, entre as pernas de Rafael Marques. A bola caprichosamente tocou a trave direita do goleiro Alex Muralha antes de cruzar a linha e levar mais de 30 mil pessoas à loucura no Allianz Parque. O jogo terminou 1 a 1. Ainda era a 25ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2016. Aquele gol, porém, evitou que o Palmeiras perdesse a liderança. Há 22 anos sem conquistar o Brasileirão, foi essencial para manter os nervos no lugar e conduzir o restante da campanha que quebraria aquele jejum.
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O Flamengo ainda não estava pronto para ser campeão. Havia apenas começado a aproveitar as contas em dia. Foi o primeiro ano completo de Paolo Guerrero, contratação que marcou o começo de uma série de altos investimentos. Não deu naquele ano. Mesmo assim terminou o Brasileirão em terceiro lugar, sua melhor campanha desde o título de 2009. Mas daria nos próximos. E aquele confronto direto seria apenas o primeiro momento nos últimos cinco anos em que Palmeiras e Flamengo ficaram frente a frente, antes do maior de todos, o ápice da rivalidade recente, uma final de Libertadores de certa maneira inevitável, no próximo sábado, às 17h (Brasília) em Montevidéu.
Um dos principais pontos de discussão desde a implosão do Clube dos 13 em 2011 é a “espanholização” do futebol brasileiro. O termo entrou na moda. Significa uma polarização como a de Barcelona e Real Madrid na Espanha. Há muitos aspectos que diferenciam as situações. Históricos, territoriais, estruturais. O dirigente brasileiro também tem certa propensão a fazer bobagem, o que dificulta o desenvolvimento de projetos de médio prazo e abre a porta para outros candidatos – o dirigente catalão, ultimamente, não está muito melhor. A ascensão do Atlético Mineiro também bagunçou o tabuleiro. Pelo investimento que faz, o Galo se posiciona como um terceiro elemento duradouro. Mas é verdade que, desde que disputaram aquele título em 2016, Palmeiras e Flamengo têm sido dominantes.
Basta olhar para o Campeonato Brasileiro, um bom termômetro porque os pontos corridos costumam minimizar os efeitos do acaso. Nos últimos cinco anos, o Palmeiras ganhou dois, e o Flamengo, mais dois. O Corinthians em 2017 foi a exceção. O Atlético Mineiro provavelmente será outra nesta temporada em que ambos também chegaram a disputar o título, com menos ou mais intensidade. Também ganharam as últimas duas Libertadores. No total, dos 15 principais campeonatos disputados por clubes brasileiros entre 2016 e 2020, a dupla levou sete, com três vices. Mais alguns extras.
Palmeiras (2016 —-> 2020)
Brasileiro: campeão, vice, campeão, terceiro lugar, sétimo lugar
Copa do Brasil: quartas, quartas, semifinal, quartas, campeão
Libertadores: fase de grupos, oitavas, semifinal, quartas, campeão
Extras: Paulistão (2020) e Copa do Brasil (2015)
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Flamengo (2016 —-> 2020)
Brasileiro: terceiro lugar, sexto lugar, vice, campeão, campeão
Copa do Brasil: segunda fase, vice, semifinal, quartas, quartas
Libertadores: não disputou, fase de grupos, oitavas, campeão, oitavas
Extras: Carioca (2017, 2019 e 2020) e vice da Sul-Americana (2017)
Na fonte, claro, está o dinheiro. O Flamengo sempre teve potencial para produzir vultuosas arrecadações, mas era limitado por dívidas tão vultuosas quanto. O grupo que colocou Eduardo Bandeira de Mello na presidência promoveu a austeridade enquanto as contas eram colocadas em dia. O mesmo aconteceu no Palmeiras, com o envolvimento mais direto de Paulo Nobre. Ele também apertou os cintos. Apertou tanto que gerou um risco real de terminar o ano do centenário rebaixado. Mas, durante o processo, substituiu dívidas sufocantes de curto prazo por um empréstimo do próprio bolso a juros baixos. Ao mesmo tempo, o Allianz Parque foi inaugurado com um modelo que não onera o clube pela construção e ainda lhe concede toda a renda da bilheteria. O programa de sócio-torcedor cresceu, e Leila Pereira começou a se interessar por futebol. O Palmeiras passou a contar com um patrocínio acima do valor de mercado e, durante os primeiros anos da parceria, com aportes extraordinários para contratar jogadores que depois se tornaram dívidas com condições favoráveis.
O faturamento do Palmeiras, inferior a R$ 250 milhões em 2014, passou da barreira do meio bilhão de reais em 2016 e segue mais ou menos nesse patamar desde então. As dívidas deram um salto em 2018, quando os presentes de Leila Pereira passaram a ser contabilizados como empréstimos, e seguem em alta. Preocupante, mas não tanto. Superaram a arrecadação ano passado, em parte por causa da pandemia que fechou as arquibancadas e empurrou prêmios por desempenho para 2021. O Flamengo passou de receitas de R$ 342 milhões em 2014 para R$ 490 milhões em 2016 ao ápice de R$ 841 milhões em 2019. Os passivos também cresceram, mas, se a arrecadação for retomada com a mesma força após a pandemia, não são motivo para alerta. Os dois também foram impulsionados por grandes vendas, especialmente o Flamengo com Vinícius Júnior, Lucas Paquetá e Reinier, mas também o Palmeiras, com Gabriel Jesus.
Nem todo dinheiro do mundo significa alguma coisa sem um projeto esportivo sólido, e aí lembra a propensão do dirigente brasileiro? O Flamengo tateou algum tempo no escuro. Em 2016, era treinado por Muricy Ramalho, que se afastou por razões médicas. Seguiu com Zé Ricardo. Reinaldo Rueda mostrou certa promessa, com os vices da Copa do Brasil e da Copa Sul-Americana, mas saiu para treinar o Chile. Ainda passou por Dorival Júnior e Abel Braga antes de chegar a Jorge Jesus. Em paralelo, adotou uma postura mais agressiva no mercado. Arrascaeta chegou no começo daquele ano, junto com Rodrigo Caio e Bruno Henrique. Meses depois, vieram laterais de seleção brasileira e com currículos vencedores na Europa, Rafinha e Filipe Luís, além de Gerson e Pablo Marí, um grande achado. Juntaram-se a um elenco que contava com Diego Alves, Diego e Éverton Ribeiro. Os investimentos continuaram, em nomes como Pedro e Michael e, mais recentemente, Kennedy, David Luiz e Andreas Pereira. O elenco do Flamengo ficou tão qualificado que nem precisou de trabalhos tão bons quanto os de Jesus para seguir competitivo. Há margem de manobra suficiente para compensar os que deixam mais a desejar, como o de Rogério Ceni, que entregou o Brasileirão, e o de Renato Gaúcho, na final da Libertadores.
Mesmo antes da chegada da Crefisa, o Palmeiras indicava maior poder de investimento e começou trazendo Alexandre Mattos para a diretoria de futebol. O dirigente emprestou a sua credibilidade a um clube que era menos que coadjuvante no mercado e exerceu a sua capacidade de fechar negócios. Exerceu-a várias vezes. Várias, várias e várias vezes. A contratação de Dudu foi um divisor de águas porque era justamente o jogador que costumava estar fora do alcance, com o bônus de ter sido retirado debaixo dos narizes de Corinthians e São Paulo. Ele teve outras boas sacadas, como Moisés e Yerry Mina, alguns negócios inexplicáveis e outros que não deram certo. Em certo ponto, não conseguia mais controlar a compulsão por reforços, dando pouco espaço às categorias de base que pareciam promissoras. Sua gestão, porém, errou principalmente na escolha de treinadores. Recorreu constantemente à bola de segurança, grifes como Oswaldo de Oliveira, Marcelo Oliveira (que na época em que foi contratado havia acabado de ser bicampeão com o Cruzeiro, então ok) e Luiz Felipe Scolari. Quando apostou, como em Eduardo Baptista e Roger Machado, teve pouca paciência. O maior acerto foi Cuca (na primeira passagem). Despediu-se com Mano Menezes, uma ideia ruim do começo ao fim e que surpreendentemente foi mesmo um desastre.
Quando Mattos e Mano foram embora, o Palmeiras teve a chance de olhar um pouco mais para o futuro e contratou… Vanderlei Luxemburgo. Interlúdio. Retornamos após o título do Campeonato Paulista, no meio da pandemia, com Luxemburgo previsivelmente demitido. O perfil do elenco era outro. Ainda qualificado, mas as contas estavam mais apertadas mesmo antes do primeiro caso de coronavírus chegar ao Brasil, Dudu havia ido embora e a aposta (forçada) era na garotada. Chegou a chance de fazer o que deveria ter feito antes: pensar um pouco fora da caixa. Abel Ferreira chegou do PAOK como um representante da poderosa escola portuguesa de treinadores e, se nem sempre conseguiu atingir o potencial máximo do talento que tem em mãos, como todos os seus antecessores desde que o Palmeiras voltou a ser protagonista também não conseguiram, tem sido o técnico mais competitivo desse período, campeão da Libertadores, campeão da Copa do Brasil e em nova final.
Gigantes por natureza, Palmeras e Flamengo se engrandeceram nos últimos cinco anos e entraram em rota de colisão. Em um primeiro momento, de maneira educada, meio que se alternando. Apenas uma vez um foi vice do outro e o ano passado foi o único em que ambos foram campeões dos principais títulos ao mesmo tempo. No meio do caminho, a rivalidade se acirrou. Houve episódios. Cheirinho aqui, provocação ali. Briga generalizada em 2018 com carrinho de Felipe Melo em Vinícius Júnior, falta de Cuellar em Dudu e seis expulsões. O Palmeiras se recusou a adiar um jogo enquanto os cariocas passavam por um surto de Covid-19. O retrospecto recente do Flamengo no confronto direto é muito favorável. Mas no fundo a principal fonte de atrito foi a consciência, um reconhecimento mútuo, de que um era a principal ameaça ao outro no cenário nacional. De certa maneira, era inevitável que em algum momento tivessem que se enfrentar, cara a cara, mano a mano, o tira-teima, 90 minutos de tudo ou nada. Aconteceu na Supercopa do Brasil, com vitória rubro-negra nos pênaltis, mas havia muito menos em jogo do que agora, no maior dos palcos.