Final em jogo único tem a ver com a arenização. E é isso que a Conmebol quer

Por Irlan Simões*
Todo mundo já tem total conhecimento de como é custoso construir e manter uma arena multiuso. A Europa já tem uma dezena de estruturas como essa que precisam de socorros mensais do poder público para que não precisem ser demolidas.
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No Brasil, exaustivamente avisado antes da Copa do Mundo, ampla maioria dessas estruturas sofre para fechar as contas, e algumas só “fecham” as contas (cheio de aspas) porque seus contratos obrigam as partes públicas dos consórcios gestores a cobrir os rombos que as partes privadas não consegue tapar com receitas reais.
Isso é tão sabido que, com a exceção de uma elite de clubes trilhardários em todo o mundo, as grandes arenas construídas na última década foram todas consequências de um “argumento”. Assim como a Copa do Mundo foi argumento no Japão/Coreia, África do Sul, Alemanha (sim, lá também), no Brasil e na Rússia; assim como a Eurocopa foi argumento em Portugal, Austria/Suiça e Polônia/Ucrânia…
É um “argumento” porque é o enunciado que congrega um conjunto de atores políticos e econômicos que colhem dividendos desse período de gastança desenfreada e assinatura de contratos. Só num contexto desses seria possível tornar publicamente aceitável a construção de estádios a custos bilionários em locais de futebol de pouca atratividade. E, repito, isso não se resumiu ao Brasil.
Pois bem, o que isso tudo tem a ver com a decisão da Conmebol em fazer a final da Taça Libertadores da América, uma das competições de clubes mais importantes do planeta, em um único jogo, aos moldes da Champions League?
Isso. Com a “arenização” do futebol sul-americano.
“Mais que uma partida, este será um grande evento esportivo, cultural e turístico que trará grandes benefícios para o futebol sul-americano, seus clubes e seus torcedores. Esta emocionante alteração oferecerá um espetáculo desportivo de classe mundial e uma melhor experiência em casa e no estádio. Em termos de desenvolvimento, projetamos maiores receitas para o torneio e para os clubes finalistas, assim como uma maior projeção do futebol sul-americano e da Conmebol a nível global”, explicou o presidente Alejandro Domínguez no site oficial da entidade” .
Para meio entendedor, a fala do presidente da entidade máxima centenária do futebol do continente já fala o suficiente. Para os que acompanham em menor grau as movimentações do futebol, vale recobrar a série de críticas e desqualificações feitas ao estádio La Fortaleza, do Lanús, clube que legitimamente teve o direito de decidir a Libertadores de 2017 em seu clássico estádio de quase 90 anos.
Para os geniais businessmen do futebol, o estádio do Lanús era inadequado para um evento de tamanha relevância, provavelmente porque não viabilizava os shows pirotecnicos, as chuvas de prata, os efeitos cenográficos e as mordomias para os convidados dos dirigentes que são habitués nas custosas arenas multiuso ao redor do mundo.
A última vez, até segunda ordem, em que teremos uma final da Libertadores nos moldes conhecidos por todos é agora em 2018. Depois disso o que acontecerá é uma “abertura de concorrência” (na verdade, uma disputa de bastidores) entre os, talvez, futuros estádio-empresa da América do Sul, para receber o evento mais importante do futebol continental no ano. Isso se realmente acontecer na América do Sul – a Conmebol também já ventilou a possibilidade de levar jogos para os EUA.
Assim como acontece hoje na Europa, o futebol de clubes incorpora a lógica da concorrência entre as cidades para o recebimento de grandes eventos. Receber uma final de Libertadores agora se tornará uma oportunidade única de atrair investimentos, fazer propaganda política, realizar obras pouco populares e, claro, arenizar os estádios locais.
Ainda não foi divulgado pela entidade, mas não há a menor sombra de dúvidas de que o pré-requisito básico para se tornar o hospedeiro da final da Libertadores será a cartilha do conceito de consumo esportivo embutido nas custosas e, em boa medida, inviáveis arenas multiuso. A Conmebol toma para si o papel de “vetor” da arenização do financeiramente frágil futebol sul-americano
A final da Libertadores vai ser o “argumento” que faltava para diversos países do continente cujos clubes, federações e governos dispõem de parcos recursos e mesmo apoio popular para a construção de grandes praças desportivas embutidas no conceito de “arenas”.
Nos próximos anos veremos governantes e empreiteiras de cidades como Cochabamba, Lima, Santiago ou Medellín em campanhas vorazes pela reforma de algum famoso estádio ou a construção de uma novíssima arena multiuso. Enquanto isso não ocorrer em grande escala, a Conmebol se resumirá a colocar esses jogos no Brasil, e quando ficar demasiadamente repetitivo, promoverá finais de Libertadores em países cujos clubes nem jogam o torneio.
Vale lembrar que quando falamos de arenização, não nos resumimos à construção desses equipamentos cujas contas nunca fecham. Estamos falando a imposição de um conceito de consumo desportivo que é, por princípio, anti-torcida.
Ainda que as políticas restritivas e criminalizadoras não precisem de arenas para existir, elas contam com esse conceito como aliado no controle do público, na elitização da assistência e no cerceamento das festas das torcidas – que, convenhamos, tem na América do Sul o seu berço e seu maior palco desde sempre.
Outras tantas problematizações mais evidentes sobre a distância entre as cidades, a falta de logística, a verdadeira “justiça desportiva”, a falta de costume com o formato, os prejuízos financeiros aos clubes, o prejuízo sentimental aos torcedores tradicionais, e a falência moral da Conmebol acabam ficando em outra pasta.
Nesse momento, a questão real é saber quem já está preparado e organizado para se beneficiar política e financeiramente da aprovação de uma medida que demorou três anos para ser votada, e continua absolutamente rejeitada por ampla maioria dos amantes do futebol na América do Sul.
*Irlan Simões (@IrlanSimoes) é jornalista e pesquisador do futebol. Doutorando em Comunicação (PPGCOM/UERJ) e autor do livro “Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno”.