15 anos depois: uma Libertadores pelos torcedores do Fluminense que não estão mais aqui
A Trivela reuniu histórias de torcedores do Fluminense que estiveram na final perdida em 2008, e na decisão da Libertadores de 2023, estarão presentes de outro modo

O Fluminense está de volta à final da Libertadores após 15 anos. Neste espaço de tempo, muita coisa aconteceu. Mudanças no clube e em todo o mundo, como o advento e ascensão das redes sociais, o avanço da tecnologia e até uma pandemia. O suficiente para que, infelizmente, muitas pessoas que estavam no Maracanã em 2008 não estejam em 2023. Ao menos fisicamente.
Motivada por manifestações dos tricolores nas redes sociais, a Trivela ouviu várias histórias de torcedores do Fluminense que querem comemorar a Libertadores 2023 também por aqueles que não estão mais aqui.
Nas palavras de seus filhos e netos, contamos aqui abaixo relatos de pessoas especiais que levaram adiante seu amor pelo Flu para as gerações que viriam depois. E que ao menos na cabeça e no coração de seus entes queridos, estarão de alguma maneira, sim, presentes no mesmo estádio em 2023.
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Quando subir ao gramado do Maracanã no sábado (4) para enfrentar o Boca Juniors, às 17h (de Brasília), o Fluminense não terá apenas os milhões de torcedores espalhados pelo mundo.
Como dizia Nelson Rodrigues, também um deles, o clube terá uma força também de quem não está mais por aqui. Assim diz a frase célebre do dramaturgo, um dos maiores tricolores de todos os tempos, que nos deixou em 1980.
“Nas situações de rotina, um “pó-de-arroz” pode ficar em casa abanando-se com a Revista do Rádio. Mas quando o Fluminense precisa de número, acontece o suave milagre: os tricolores vivos, doentes e mortos aparecem. Os vivos saem de suas casas, os doentes de suas camas e os mortos de suas tumbas”
Uma avó que assistirá o Fluminense na final da Libertadores… pelos olhos da neta
Dona Lúcia Maria Ricciardi dos Reis foi uma fanática torcedora do Fluminense. Em uma família que teve até presidente do clube, foi ela a principal responsável por manter viva a chama de torcida em seu filho, Alexandre, que a acompanhou no Maracanã em 2008, quando ela já sofria de um câncer e tinha apenas metade do pulmão. “Você só tem essa opção, só eu que te levarei pro futebol pra ver o Fluminense”, dizia ela.
— Ela já estava doente, com câncer no pulmão, mas era tão fanática que foi mesmo assim. Os sinalizadores eram tantos que ela começou a passar um pouco mal para respirar. Voltamos com o jogo já iniciado, sem fumaça e pó de arroz. Ficamos no lado oposto da torcida por superstição, contra a LDU, porque ficamos lá contra o São Paulo, nas quartas de final. Ela me acompanhava nos jogos, sempre, desde criança — relembra o filho, de 59 anos.

A paixão de Lúcia Maria segue viva não só em seu filho, mas também na neta Beatriz. Fanática pelo clube, a cirurgiã-dentista de 25 anos é a “representação” da avó, que hoje teria 84, para o pai. E como estarão juntos no estádio, na véspera de seu aniversário, ele tem certeza que sua mãe, que os deixou em 2016 em função dos problemas pulmonares, também estará presente.
— Ela vai estar lá. Parece piegas, mas eu tenho certeza. Minha filha era muito ligada à minha mãe. Eu nem ia ao estádio no sábado. Eu comprei ingresso para minhas filhas e não iria. Mas a vida tem suas coincidências. Vivi essa expectativa com ela, e agora vou viver a experiência positiva com a minha filha. O filme vai passar na cabeça, e dessa vez com final diferente. Seremos campeões e ela vai assistir tudo com a gente — afirma Alexandre.

Em abril, Beatriz publicou uma carta para sua avó em suas redes sociais. Um resumo do sentimento de muitas gerações e também uma prova de que dona Lúcia Maria, que esteve naquele Maracanã em 2008, estará também em 2023.
— Teu amor pelo Flu se perpetua através de mim. Obrigada por essa herança tão valiosa. Vou honrá-la pra sempre, e, ainda que a saudade as vezes maltrate, não me sinto sozinha. Nem teria como.
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O pai que viveu os melhores momentos com o filho pelo Fluminense… já separados
Seu Renato Silva Alves foi um torcedor daqueles de quebrar o radinho de pilha no Maracanã. Literalmente. O aparelho em formato de caneca nas cores do Fluminense vivia remendado de esparadrapos e mal funcionava, mas estava sempre em seus ouvidos, mais do que um amuleto, mas como amigos inseparáveis. Já seu filho, o jornalista Rodrigo Alves, por vezes se separava do pai dentro do estádio, de tão diferentes que são.
— Minha relação com ele era muito com o futebol. O futebol grudava a gente. Desde os anos 1980. A gente brigava muito, mas aquele momento era diferente — resume.
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O fanático que falava alto e cornetava muito o Flu no estádio tem um filho de fala calma e baixa, até surpreendentes para o homem de 1,84m que é chamado pelo aumentativo. Se não é tão emocional com as palavras para falar de seus sentimentos, ele relembra com carinho que acabava sempre assistindo ao time do coração em lados diferentes do mesmo setor. Mania que se tornou superstição.
— Meu pai tinha um temperamento muito explosivo, completamente fanático, era muito Fluminense, me ensinou a ser assim. Tinha um comportamento de ser muito intenso no estádio, independente do jogo. A ponto de eu não gostar de ver o jogo com ele. A gente tinha isso de a partir de um determinado momento, ver o jogo em lugares separados nas cativas. Na Libertadores, em 2008, teve um momento muito emblemático, o gol do Washington, eu saí correndo por cima das cadeiras para encontrar meu pai do outro lado. Eu poderia cair, me machucar todo, eu saí correndo como se fosse uma pista plana até encontrar o meu pai, a gente se abraçou, talvez tenha sido o meu maior momento de explosão de alegria no Maracanã com o meu pai — conta.
As comemorações efusivas pelo Fluminense são lembranças vivas na cabeça do filho. A primeira sobre futebol é um abraço inesquecível em 1985, quando o Tricolor venceu o Carioca sobre o Bangu e Rodrigo esperava seu Renato em casa. Assim que entrou, ajoelhou e recebeu o afago do filho. Se abraçaram ali, no corredor do apartamento na Tijuca, como fariam também em 1995, no Gol de Barriga de outro Renato, o Gaúcho. Até as televisões, por vezes, eram separadas. Desta vez, entretanto, foi Rodrigo, nervoso após a expulsão do lateral Lira, quem ouviu o gol no radinho de pilha.

Já as palavras em voz alta deram lugar ao silêncio em 2008. Seja na final da Libertadores ou em sua lamentável morte súbita, quatro meses depois da final, em novembro, por um problema no esôfago, seu Renato falou pouco nas lembranças que seu filho tem daquele ano. Como não falaria em 2010, quando o Flu foi campeão brasileiro e seu choro de emoção falou por todos. E assim tem sido também em 2023.
— Não sou muito de chorar, mas eu chorei demais. Torcida é uma coisa que me emociona muito. No futebol, eu fico assim. Nessa campanha, em 2023, eu tenho chorado muito no Maracanã, antes mesmo do jogo começar, eu choro de ter que tirar os óculos e limpar o rosto. Isso, claro, tem a ver com o meu pai. O título está perto, a torcida está obcecada com isso, e então tem toda essa carga de emoção — opina.

Para Rodrigo, claro, todo dia já é 4 de novembro faz tempo. O caminho para o estádio do Maracanã no sábado (4) não sai de sua cabeça. Não à toa. Ele terá por ali a companhia de um amigo. Mas assim como fazia com seu pai, se separará dele logo na entrada. Com muito choro e emoção, como seu Renato.
— Tenho pensado todos os dias nisso: como vai ser a chegada no estádio. Vai ser diferente, porque vai ter a torcida do Boca em algum lugar. Eu tenho ido sozinho sempre, mas dessa vez vou emprestar uma das cadeiras a um amigo. Mas eu vou ver o jogo sozinho. A gente vai chegar junto, mas chega lá cada um vai para um lado. Eu quero ver sozinho, fico meio em transe. Tenho certeza que a chegada no estádio vai ser diferente. Não tenho nenhuma dúvida que já vou entrar chorando. O que a torcida tem feito no Maracanã nesses jogos é absurdo, é muito fora do normal. A gente, claro, só vê a nossa torcida, mas eu duvido muito que outra torcida tenha feito coisas que a nossa fez esse ano.
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Enquanto falava sobre o presente, deu tempo até para algo mais leve e folclórico. Depois que foi às redes sociais contar sobre sua relação com seu pai e o Fluminense, Rodrigo, que se define “cético e ateu”, viu a luz de sua sala passar a piscar repentinamente. Sem o interruptor estar ligado.
— Tem apagado e ligado do nada. A lâmpada não queimou. A primeira vez que aconteceu, eu estava sentado vendo televisão e a luz apagou em cima de mim, mas o outro lustre não. O interruptor estava desligado. Eu liguei de novo e funcionou.
Do céu, um italiano fanático pelo Fluminense ‘responde' pedidos do filho
Foi com apenas quatro anos que Antonio De Franco deixou a Calábria, em 1959, e migrou para o Brasil. No Rio de Janeiro, se radicou no bairro da Penha, onde abriu uma loja de materiais de construção quando adulto, época em que já tinha visto o Fluminense ser campeão brasileiro em 1970 e vibrado com a Máquina Tricolor comandada por Rivellino em 1975 e 1976. Escolheu o clube pelas cores de seu país. E nunca mais as trocou.
Em 1980, quando tinha 25 anos, ele virou pai de Domenico De Franco Neto, que se tornaria o seu maior companheiro de Maracanã.

Lá, assistiram juntos muitos jogos épicos, como o título do Campeonato Carioca de 1995, com gol de barriga de Renato Gaúcho, e jogos de campanhas que terminaram também em taça, como a Copa do Brasil de 2007 e o Campeonato Brasileiro de 2010. Inseparáveis nas arquibancadas, personalizam as reflexões de Santo Agostinho sobre a morte, ou a frase do médium Chico Xavier em seu livro “Libertação”.
“O amor jamais desaparece. A união das almas vence o tempo e a morte.”
A pandemia de COVID-19 levou de Domenico seu pai, seu Antonio. Ele esteve ali com seu filho em todas as conquistas do Fluminense desde 1980, ano em que o hoje analista de sistemas nasceu — e o Tricolor bateu o Vasco na final do Campeonato Carioca, com gol de Edinho. E se o coronavírus lhe ceifou a vida, ele ainda está, ao menos nos pedidos.
— Em todos os jogos eu olho para o céu e me lembro dele. Lamento não estarmos juntos como estivemos sempre, e não ter tido a oportunidade de ir ao jogo com meu pai e meu filho, juntos. Não realizei esse sonho. Nos jogos mais importantes é que mais me lembro dele. Sinto ele comigo. Em vez de pedir a Deus, peço a ele que o Fluminense saia com a vitória — revela Domenico.

E seu Antonio responde. Contra o Argentinos Juniors, nas oitavas de final, o Flu empatava sem gols até que Domenico pediu aos céus. Em ato contínuo, Samuel Xavier tirou da garganta dos tricolores o grito entalado de gol. Mas o mais emocionante ainda estava por vir pelo santo de devoção do exclusivo do filho, que foi um “torcedor raiz, fanático, o típico reclamão de arquibancada”.
O Fluminense perdia para o Internacional até os 36 minutos do segundo tempo. A Libertadores acabava ali para o tricolor. Até que Antonio interviu ao pedido de Domenico. John Kennedy fez o primeiro, e Germán Cano, que carrega em seu nome Ezequiel, o anjo do perdão, curiosamente, não perdoou.
O Fluminense virou o jogo com os auspícios do anjo que é invocado para libertar as pessoas da dor e da mágoa, as substituindo pelo perdão e pelo amor. Amor que nunca faltou entre pai, filho e o próprio clube.
— Ir ao jogo sem ele é o que mais lamento. Eu espero que em caso de título, eu feche os olhos, aponte para os céus, dedique isso tudo a ele. Vai ser a primeira pessoa em quem eu vou pensar. Eu estarei no mesmo setor que estivemos em 2008, mas dessa vez, mesmo de longe, ele vai ver um final diferente. Vai ser especial. Em campo, a presença dele estará lá, por mais que lamente que ele não tenha estado comigo e meu filho em vida — explica.

A paixão de Domenico e Antonio pelo Fluminense e pela Itália já foi motivo de reportagens quando a seleção enfrentou o clube em um amistoso em Volta Redonda. Ambos dividiam também essa paixão, e seu filho acredita que, assim como a Azzurra faturou a Euro em 2020, pouco depois de sua morte, agora, chegou a vez do Tricolor.