Há 100 anos, o amor à camisa do Nacional fez Abdón Porte tirar a própria vida dentro de campo
Há uma boa dose de literatura ao se idealizar a figura do “capitão charrua” – o homem que simboliza o futebol uruguaio. Obdulio Varela é o exemplo mais notável. O líder que elevou a Celeste rumo à conquista da Copa do Mundo de 1950, com firmeza e valentia. E que, além de sua garra em campo, tinha um caráter afável longe dele. Porém, além do Negro Jefe, a figura mítica se apresenta em outros jogadores históricos. Antes de Obdulio, José Nasazzi foi a alma do Uruguai bicampeão olímpico, pioneiro a receber a Jules Rimet em 1930. E antes ainda, houve Abdón Porte. Não exatamente por encabeçar a seleção às glórias. Mas por acabar com a própria vida visando seus ideais de amor à camisa. Uma “lenda” que verdadeiramente aconteceu há 100 anos e se tornou um dos mais tocantes capítulos da literatura sul-americana. Em 5 de março de 1918, o capitão do Nacional se suicidou no centro do gramado do Gran Parque Central, em depressão por seu ostracismo no clube. Tinha apenas 25 anos.
Porte nasceu em 1893, no departamento de Durazno, interior do Uruguai. Era um homem de origens humildes, sem muita instrução. Chegou a Montevidéu em 1908, em roupas simplórias, analfabeto. Ganhou o apelido de ‘El Indio'. Foi trabalhar na capital e, dono de um porte físico imponente, o adolescente não demorou a se destacar nos campos de futebol. Logo se juntou ao Colón, um clube aberto a operários, em tempos aristocráticos do esporte. Depois, passaria ainda pelo Libertad. Até que a chance de sua vida se concretizasse em 1911.
O Nacional sustentava uma atração imensa sobre a população de Montevidéu. Foi criado por estudantes, para ser uma agremiação genuinamente uruguaia, numa época na qual seus concorrentes eram encabeçados por estrangeiros. Não à toa, os símbolos se inspiravam na bandeira de José Gervasio Artigas, pai da nação. O sucesso em campo referendou ainda mais os tricolores, bicampeões uruguaios e formando a totalidade da Celeste que conquistou a primeira vitória de sua história, batendo a Argentina em amistoso disputado em 1903. Contudo, em 1905 o time perdeu seus dois maiores craques, Bolívar e Carlos Céspedes, vítimas da varíola. Apesar do apoio popular, instaurou-se uma grave crise institucional nos bastidores do clube.
Em 1911, o Nacional convivia com a disputa entre setores distintos em seu comando. Haviam aqueles que preferiam manter a instituição atrelada às suas origens elitistas. Do outro lado, os que pregavam a democratização do acesso e conjunção com as massas. Pois estes venceram, em assembleia que levou à presidência o médico José María Delgado, responsável pela reforma e abertura do Bolso. O novo mandatário também contratou uma leva de novos jogadores, sobretudo de origens humildes. Entre estes, trouxe Abdón Porte, aos 18 anos. Um daqueles que aprendeu a amar as façanhas dos irmãos Céspedes e as três cores de Artigas.
A partir da temporada seguinte, Porte se transformou em um dos esteios do novo Nacional. Começou atuando como zagueiro pela direita, até que se afirmasse como volante. Jogador cheio de predicados, como descreve o antigo companheiro Luis Scapinachis, ao livro ‘Gambeteando frente al gol': “Era um típico homem defensivo de estilo combativo, tenaz centre-half de um período brilhante do futebol oriental. Abdón Porte era notável, com virtudes e qualidades extraordinárias, defensivas e de colaboração, bem conhecidas e recordadas por muito tempo entre os torcedores. Era um rapagão bom, amigo dos amigos, gauchaço para fazer bem. Manso em campo, embora o rompessem com pancadas”.
A capacidade física de trabalhador se uniu à ambição de Porte em triunfar pelo clube de coração. El Indio se tornou um dos preferidos da torcida, por toda a garra que se via em campo, compensando as limitações técnicas. Combativo, mas sem ignorar a lealdade. Também oferecia sua disposição ao ataque, marcando gols com certa frequência e levando perigo com suas cabeçadas certeiras. E por tudo o que se evidenciava no jovem, não demorou a liderar pelo exemplo. Independentemente da pouca idade, ganhou com o tempo a confiança para sustentar a braçadeira de capitão. Não se negava sua influência sobre o espírito do time. Era a alma do Bolso.
A política de José María Delgado logo começou a dar resultados em campo. O Nacional reconquistou o Campeonato Uruguaio em 1912, encerrando um hiato de nove anos sem o título. Acumulou seis pontos de vantagem sobre o vice-campeão, o Central Uruguay Railway Cricket Club – que originou o Peñarol. Depois, o Bolso comemoraria também um até então inédito tricampeonato na liga, botando a faixa no peito entre 1915 e 1917. Além disso, faturava outros certames secundários no país, a exemplo da Copa Competência (em 1912, 1913, 1914 e 1915) e da Copa de Honor (em 1913, 1914, 1915, 1916 e 1917).
O sucesso do Nacional e de Porte não se limitou às fronteiras do Uruguai, aliás. Naquele momento, eram comuns os torneios internacionais reunindo também os principais representantes da Argentina. Em 1916, foi criada a Copa Aldao, disputada entre o campeão uruguaio e o campeão argentino. Pois o Bolso terminou com a taça, derrotando o poderosíssimo Racing – força absoluta do outro lado do Rio da Prata, hepta argentino entre 1913 e 1919. Além disso, existiam outras competições paralelas, envolvendo os vencedores das copas locais. Os tricolores se consagraram duas vezes na Copa de Honor Cousenier, batendo o Racing em 1915 e o Rosario Central em 1916. E foram mais dois títulos na Copa de Competencia Chevallier Boutell, superando San Isidro e Porteño nas finais.
As conquistas exaltadas nas ruas de Montevidéu contribuíam para a popularidade do Nacional. E a fama de Porte se estendia aos clássicos contra o Peñarol. Em 23 confrontos com os rivais, venceu 11, derrotado em apenas sete. E o detalhe mais impressionante: seis dessas derrotas aconteceram em amistosos, enquanto dez vitórias se deram nos 14 encontros oficiais a partir de 1914. El Indio anotou cinco gols contra os aurinegros.
Um dos episódios mais emblemáticos de carreira de Abdón Porte aconteceu no dérbi. Nacional e Peñarol se enfrentavam em maio de 1917, pela Copa Albion. O capitão sofreu uma lesão no joelho logo aos 10 minutos. Em tempos nos quais as substituições não eram permitidas, ele resolveu permanecer em campo durante os 80 minutos restantes, oferecendo todo o seu brio. A contusão, todavia, tinha se agravado e ele precisou se afastar durante semanas para tratá-la. Foi a maior ausência desde a sua contratação. De sua estreia pelo Nacional (em partida contra o Dublin, realizada em março de 1911) até o final da temporada de 1917, o ídolo atuou em 206 dos 227 jogos dos tricolores no período. Um “fominha” nato, que não gostava de perder um compromisso sequer.
O ano de 1917, aliás, foi singular a Porte. O Nacional conquistou tricampeonato uruguaio com uma campanha avassaladora, invicto, assumindo a propriedade do troféu. Foram 16 vitórias em 18 jogos, com 48 gols marcados e apenas três sofridos. Além disso, El Indio teve o gosto de compor a seleção uruguaia que conquistou a Copa América daquele ano. O poderio do Nacional preponderou na convocação da Celeste, com nove jogadores tricolores – algumas lendas entre eles, como Ángel Romano, dono de seis títulos no torneio continental; Héctor Scarone, prodígio que despontava para participar de todas as grandes conquistas charruas; e o seu irmão mais velho Carlos, outro atacante implacável. Porte, apesar de listado, não atuou nenhum jogo. Ao menos pôde comemorar o sucesso dos companheiros, com a vitória por 1 a 0 sobre a Argentina, valendo a taça. Sua única partida com a camisa celeste aconteceu dois dias depois, em amistoso contra o Brasil, no próprio Parque Central. Os uruguaios venceram por 3 a 1, com dois gols de Luis Grecco e outro de Isabelino Gradín.
Naquele momento, porém, as lesões minavam o espaço de Porte. No final de outubro de 1917, pouco após a Copa América, o Nacional conquistou a Copa Honor sobre o Peñarol. E após um primeiro tempo avassalador dos tricolores, anotando quatro gols, os aurinegros descontaram para 4 a 2 justamente se aproveitando dos problemas físicos do capitão adversário. Sua potência era prejudicada e o médico advertiu que sua carreira estava comprometida. A torcida, que antes o idolatrava, começava a questioná-lo. Diz-se mesmo que as vaias ecoaram no Parque Central contra o ídolo, com seu declínio evidente em 1918. Era o começo do fim.
A posição intocável de Porte se tornou frágil. E a comissão diretiva – que fazia o papel de “técnico” do Nacional – passou a buscar alternativas à cabeça de área. Trazido do Montevideo Wanderers para a temporada de 1918, Alfredo Zibechi pedia passagem no 11 inicial. Sem substituições, a reserva era considerada a morte esportiva para muitos. A solução para seguir atuando sempre seria procurar um novo clube. O que, dentro de seu peito, El Indio não aceitaria. A perspectiva de deixar o campo e perder o amor da torcida afundaram o meio-campista na depressão. Em alguns momentos, pessoas próximas percebiam como o ostracismo tirava o seu ânimo. Ao irmão Juan, teria confessado: “Minha vida sem o Nacional e sem o futebol não tem sentido. O dia em que não jogar, me dou um tiro”. A princípio, a mensagem foi tratada como brincadeira.
As horas fatídicas de Abdón Porte acontecem em 4 de março de 1918. Naquele dia, o meio-campista foi titular e o Nacional derrotou o Charley por 3 a 1. Como era costume após a partida, reuniu-se na sede social do clube com outros membros para beber. Lá, conforme algumas versões da história, teria ouvido que Zibechi seria definitivamente titular. Despediu-se no horário habitual, no fim da noite, para pegar o bonde de volta à casa. Mas seu destino foi outro. Rumou ao Parque Central, o campo mítico do Bolso. O estádio mais antigo da América do Sul, construído no terreno em que José Artigas foi nomeado ‘Jefe de los Orientales' rumo à independência uruguaia, seria palco de outro capítulo marcante. Desta vez, longe de ser feliz.
Porte se dirigiu ao centro do gramado, o qual dominava em seus melhores momentos. Ajoelhado, com um revólver na mão, deu um tiro no peito a sangue frio. A bala rompeu seu coração e encerrou a sua vida. Tinha somente 25 anos. Já era madrugada de 5 de março. Ao seu lado, dentro do chapéu de palha, deixou duas cartas. Uma delas era endereçada à família. A outra, ao presidente do Nacional. “Querido doutor José María Delgado, peço a você e aos demais companheiros de comissão que façam por mim como fiz por vocês: façam por minha família e por minha querida mãe. Adeus querido amigo da vida”, escreveu. Também poeta, além de médico e dirigente, Delgado havia ensinado seu capitão a ler e a escrever. Em sinal de gratidão, o homem humilde lhe ofereceu um poema:
“Nacional, ainda que em pó convertido
e em pó sempre amante.
Não esquecerei um instante
o quanto te amei.
Adeus para sempre”
No mais, ainda havia um pedido expresso de Porte para que fosse enterrado no Cemitério de La Teja, “com Bolívar e Carlitos”, os irmãos Céspedes que tanto representavam ao Nacional. El Indio seria o terceiro mártir da história dos tricolores. Em vez de aceitar o cotidiano prosaico longe do futebol, como um trabalhador comum talvez lembrado por seu passado como ídolo, decidiu encerrar sua vida. Não via outro caminho além do Bolso. Acima do jogador, foi o mais ardoroso e apaixonado dos torcedores.
Na gélida manhã seguinte, quando iniciou seus trabalhos de manutenção no estádio, Severino Castillo percebeu um vulto. O histórico funcionário tricolor, que se dedicou ao Parque Central de 1909 a 1942, caminhou rumo ao centro do gramado quando, mais próximo, reconheceu o homem caído. Era Porte, com o peito ensanguentado, já sem salvação. “Pobre rapaz! Já andava com vontade de se matar. Eu me lembro que, poucos dias antes, ele me deu umas moedas dizendo: ‘Pega, Indio. Toma um vermouth. Vai ser o último'. Pobre Abdón…”, relembrou no ‘Libro de Oro do Nacional'.
O companheiro e amigo Luis Scapinachis, por sua vez, avaliava: “Por que se matou? Porque estava aninhado em seu coração e em todo seu ser o desejo de vestir sempre a camisa tricolor. Quando começaram a fraquejar as pernas carregadas de vitória, ante a cruel perspectiva de ser eliminado do conjunto, optou por se eliminar”. Já Numa Pesquera, dirigente do Bolso, refletiu: “O Nacional era seu ideal, o amava como o crente ama sua fé, como o patriota ama a sua bandeira”. Na época, surgiram também versões que apontavam suas dificuldades financeiras, após se demitir da Drogaria del Rey, diante da promessa de maiores salários que não se cumpriu. Vale lembrar que o futebol só se profissionalizou no Uruguai durante a década de 1930. Aos colegas, entretanto, nunca confessara nada.
O velório de Porte gerou uma grande comoção em Montevidéu. Os jogadores do Nacional realizaram uma bela homenagem ao colega falecido, levando flores e carregando seu caixão até o cemitério. Também enviaram uma carta coletiva aos seus familiares. Além da mãe e dos quatro irmãos, ele deixou uma noiva, com quem tinha casamento marcado para o início de abril, menos de um mês depois da fatalidade.
Outros clubes, inclusive o próprio Peñarol, mandaram coroas de flores. O Montevideo Wanderers também se juntou à causa, realizando uma partida beneficente contra o Bolso, com a bilheteria em prol da família do meio-campista. “Assistimos a este jogo no qual a memória do Indio flutuava. Quando os olhos distraídos se dirigiam ao meio-campo… buscavam Porte. Lá o havíamos visto muitas vezes. Lá havia dormido, lá se foi. Talvez a velha torre do moinho siga olhando para lá”, descreveu o jornalista Diego Lucero, sobre aquele amistoso.
Alfredo Zibechi, de fato, se transformou no novo dono do meio-campo do Nacional. Defendeu o clube até sua aposentadoria, em 1926. Conquistou cinco títulos do Campeonato Uruguaio e fez parte da famosa excursão dos tricolores à Europa em 1925. Além disso, também se firmou na seleção. Foram 39 partidas com a Celeste, três títulos da Copa América e o ouro olímpico nos Jogos de 1924.
O sangue de Abdón, de qualquer maneira, correu forte dentro dos gramados. Seu sobrinho, Roberto Porta (batizado assim por um erro de grafia no cartório) tinha apenas quatro anos na época da tragédia, mas seguiu os passos do Indio, para honrar sua memória. Como atacante, fez parte do Nacional pentacampeão uruguaio nos anos 1940, assim como defendeu Independiente e Internazionale. Também ganhou a Copa Dr. Gerö quando era convocado à seleção italiana, em 1935, e a Copa América ao retornar à Celeste, em 1942. Por fim, se tornou técnico de igual relevância. Treinou vários clubes uruguaios e a Celeste, inclusive na Copa de 1974.
Abdón Porte seguiu relembrado no Gran Parque Central. Seu nome é evocado pelos torcedores como exemplo de amor à camisa, com uma famosa faixa pedindo para que os jogadores atuem “Por la sangre de Abdón”. O Nacional batizou uma das tribunas com seu nome, enquanto outra leva o nome do presidente Delgado – Héctor Scarone é mais um homenageado, assim como Attilio García, argentino que foi companheiro de Porta no esquadrão dos anos 1940. Já nesta semana, em que se completam os 100 anos da morte do mártir, o Bolso resgatou sua história de diferentes formas, inclusive usando uma camisa especial tingida em vermelho escuro – na cor do sangue do capitão. Um sangue que ungirá os tricolores pelo resto de seus tempos.
¡A 100 años de pasar de jugador a leyenda! #AbdónLeyenda pic.twitter.com/vwuWGzC3eZ
— Nacional (@Nacional) 5 de março de 2018
PS: E se a história de Abdón Porte soa como literatura, vale também conferir dois contos gerados por ela. Em 1918, o escritor uruguaio Horácio Quiroga assinou “Juan Polti, half-back”, claramente inspirado por El Indio. Já em 1995, ele ganhou um trecho também em “Futebol ao Sol e à Sombra” de Eduardo Galeano.