América do Sul

Campeonato Boliviano é anulado após escândalo de manipulação de resultados

A Federação Boliviana apresentou uma denúncia ao Ministério Público, com áudios que podem incriminar dirigentes, jogadores e árbitros por venda de resultados em busca de lucros com apostas esportivas

O Campeonato Boliviano é mais uma competição assolada por um grave caso de manipulação de resultados. A Federação Boliviana de Futebol realizou nesta segunda-feira uma denúncia ao Ministério Público, diante de áudios que apontam para fraudes na liga local, relacionadas a apostas esportivas. Já nesta terça-feira, os 17 clubes da primeira divisão se reuniram para definir os rumos do campeonato.

O Bolivianão será anulado, depois de 24 rodadas realizadas. As equipes irão se reorganizar numa nova competição, mais curta, mas que começará do zero. Além disso, os representantes das equipes solicitaram a destituição dos membros da Comissão de Arbitragem, acusados de serem cúmplices. A empresa Sport TV Rights, que tinha os direitos de licença sobre as apostas no futebol boliviano, também perderá sua autorização.

A ampla maioria dos clubes votou pela anulação do Campeonato Boliviano de 2023, mesmo que as denúncias ainda estejam sendo investigadas. Foram 14 votos a favor, dois contrários e uma abstenção. Com isso, a Federação Boliviana de Futebol precisará viabilizar uma nova competição, em caráter extraordinário. A entidade local também precisa da aprovação da Conmebol, inclusive para reorganizar a distribuição das vagas rumo à Libertadores e à Copa Sul-Americana em 2024.

“Foram encontrados sérios indícios de que os jogos foram manipulados. A Conmebol será consultada sobre o assunto. Durante a reunião, foram expostos todos os alcances, se debateram todas as instâncias, se deu conhecimento sobre os casos nos tribunais esportivos e no Ministério Público”, declarou Fernando Costa, presidente da FBF e principal nome à frente da denúncia feita pela federação.

A denúncia contra a máfia de apostadores

A denúncia de manipulação de resultados no Campeonato Boliviano partiu de um árbitro, Gaad Flores, que entrou em contato com a Federação Boliviana de Futebol. De imediato, a entidade acionou seu departamento jurídico e também o Ministério Público. Marcos Rodríguez, presidente do Vaca Díez, ofereceu US$3 mil para Flores. O dirigente exigia que fossem anotados cinco gols na partida contra o Nacional de Potosí, para qualquer um dos lados, três só no primeiro tempo. O cartola inclusive autorizava que pênaltis fossem marcados contra sua equipe. A conversa estava sendo gravada.

Na gravação, Rodríguez também afirmou que o Nacional de Potosí estava ciente da trama e citava o nome do goleiro adversário. Mais grave, apontava que Alejandro Mancilla, presidente da Comissão de Arbitragem, já tinha sido informado. Após as revelações, o presidente do Vaca Díez pediu licença de seu cargo. O dirigente apresentou uma nota à diretoria, se desculpou às lágrimas e disse que se submeterá às investigações da justiça. O Vaca Díez, 13° colocado do Campeonato Boliviano, goleou o vice-líder Nacional de Potosí por 6 a 1 no dia 5 de agosto. Foram três gols no primeiro tempo, incluindo um de pênalti e outro contra. Flores era o árbitro.

Citado nos áudios, Alejandro Mancilla se defendeu. O presidente da Comissão de Arbitragem pediu que a presunção de inocência seja respeitada. “Não tenho nada a ver, usaram meu nome e estamos à disposição da investigação. Nós, árbitros, somos inocentes até que se prove o contrário. Nunca me meti em apostas e nunca farei isso”. Todavia, em votação, os clubes do Campeonato Boliviano decidiram afastar Mancilla e outros dois membros da Comissão de Arbitragem.

A posição da FBF

Presidente da federação, Fernando Costa não acredita que o episódio envolvendo o Vaca Díez seja um caso isolado: “Há outros dirigentes, outros vários jogadores, vários árbitros. Isso é a ponta do iceberg. Há verdadeiras máfias que passaram a atuar no futebol boliviano. Estamos numa posição vulnerável. Que isso nos sirva de oportunidade para que o futebol se torne transparente”. Segundo o dirigente, o primeiro grande passo era suspender as apostas no futebol boliviano em 72 horas. A federação fez a solicitação à empresa Sport TV Rights, que possui os direitos de uso das apostas no país e pode ser processada caso não cumpra a ordem.

Já Cristian Camacho, advogado da FBF, enfatizou como muitos dos envolvidos já são conhecidos das autoridades: “A denúncia foi apresentada para o Ministério Público, que terá que revelar alguns antecedentes que se tomaram conhecimento. Há provas contundentes e testemunhos de suma importância. Foram dados nomes e momentos. Estamos falando com os dirigentes de algumas equipes, jogadores que tiveram consenso numa mesma partida e árbitros. Há vários implicados. Com o pronunciamento do Ministério Público, se saberão nomes e clubes que participaram”.

Entre os primeiros dirigentes a se manifestarem sobre o episódio, Marcelo Claure indicou sua indignação. O proprietário do Bolívar ameaçou inclusive deixar seus investimentos no futebol boliviano, caso não se faça um trabalho sério de limpa contra os envolvidos. O empresário de pais bolivianos, nascido na Guatemala e radicado nos Estados Unidos, possui uma série de negócios no futebol. Ele era um dos acionistas do Inter Miami até setembro de 2021 e se tornou também parceiro do City Football Group na administração do Girona.

“Se não vejo uma reestruturação total do futebol boliviano, em que se faça uma verdadeira investigação, se castigue os corruptos e se limpe toda essa corrupção, o projeto do Bolívar se acabará para mim e serei o primeiro a sair da Bolívia e não investir mais. É inédito investir em algo que está podre de corrupção”, escreveu Claure, em suas redes sociais. “Alguém contribui com milhões de dólares próprios para que árbitros, dirigentes e jogadores corruptos sujem o futebol boliviano. Hoje escudei os áudios e vi as mensagens que demonstram que nosso futebol está infestado de corrupção. Não sei se é possível voltar a jogar sem saber quem está comprado”.

A crise recorrente do Campeonato Boliviano

O Campeonato Boliviano era liderado pelo Strongest. O Tigre somava 49 pontos após 23 partidas disputadas, seguido por Nacional de Potosí (43 pontos) e Bolívar (41 pontos). Nesta temporada, a competição passou a ser organizada num modelo de torneio único, sem mais a divisão de Apertura e Clausura – que durou de 2003 a 2022 no país. Paralelamente, também era realizada uma versão local da Copa da Liga, com as partidas durante os dias da semana.

O Campeonato Boliviano, além do mais, se acostumou às recorrentes crises recentes. Esta é a quarta interrupção nas últimas cinco temporadas. A crise política e a tentativa de golpe no país afetou diretamente o Clausura de 2019, que ficou paralisado durante 36 dias e ainda correu risco de tapetão na reta final. A liga suspendeu o Torneio Clausura de 2020 em decorrência da pandemia e o então presidente da federação boliviana, César Salinas, faleceu com covid-19. Já em 2022, o Clausura não terminou por causa dos conflitos sociais no Departamento de Santa Cruz. Muitos clubes bolivianos enfrentam dificuldades financeiras. O San José de Oruro foi rebaixado em 2021 por conta de problemas administrativos e o Real Potosí declarou falência em 2022.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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