Zinédine Zidane tinha acabado de pendurar as chuteiras quando foi recebido como um chefe de estado na Argélia, em dezembro de 2006. O craque foi tratado como um filho querido da terra, mesmo que defendesse outra bandeira – a do antigo colonizador. O presidente do país, Abdelaziz Bouteflika, condecorou Zizou por seu simbolismo: servia de exemplo aos descendentes de imigrantes na Europa, da mesma maneira como inspirava os jovens nascidos no norte da África. E a recepção ao camisa 10 teve a presença de alguns veteranos que abriram caminho a Zidane. Os verdadeiros heróis nacionais, que interromperam suas carreiras no Campeonato Francês para lutar pela independência da Argélia e contra o colonialismo da França. Era como se a reverência a Zizou não fosse possível sem o pioneirismo dos lendários Rachid Mekhloufi, Mustapha Zitouni, Abdelaziz Ben Tifour e três dezenas de futebolistas que viajaram o mundo durante quatro anos, de 1958 a 1962, em prol da libertação nacional. Feito embaixadores, conscientizaram milhares de pessoas sobre os anseios de seu povo. Através de um futebol vistoso e diversas goleadas, falaram sobre liberdade.
O próprio Zidane reconhecia a importância daqueles senhores. Tinha ouvido as histórias a partir de seu pai, argelino da região de Kabylie que emigrou à França em 1953, meses antes que a Guerra de Independência se iniciasse na Argélia. O chamado “Onze da Independência” contribuiu bastante à soberania argelina: o time de futebol, formado por atletas profissionais que fugiram da França, representou a Frente de Libertação Nacional (FLN) em 13 países e angariou apoio à luta. Zizou nunca escondeu o orgulho por suas raízes e seu sangue argelino – a ponto de declarar que não ficaria triste com um empate, quando as duas seleções se enfrentaram num amistoso em 2001. Defender a França e ao mesmo tempo sentir pertencimento em relação à Argélia não significava necessariamente um conflito a Zidane. Da mesma maneira como aqueles pioneiros do futebol tinham suas vidas na França, mas trataram a causa independentista como um dever.
O melhor exemplo dessa face dupla da história é Rachid Mekhloufi. O atacante era um dos maiores ídolos do Saint-Étienne e até atuou pela seleção francesa, mas depois se transformou no grande virtuoso do Onze da Independência, que arrastava multidões para os estádios e encantava também pelo bom futebol. Quando a guerra culminou na independência e o time da FLN pôde voltar para casa, Mekhloufi ainda assim retomou sua carreira no Campeonato Francês. Contribuiu à libertação de seu povo após um sangrento conflito, mas nem por isso virou as costas àqueles franceses que não eram exatamente responsáveis pelo pensamento colonialista. Via nos caminhos de Zidane também uma luta importante dos novos tempos.
Como analisou o próprio Mekhloufi, depois daquele encontro no palácio presidencial argelino em 2006: “Zidane é uma grande personalidade. Ele se lembra de suas raízes. Zidane já conhecia o time da FLN graças ao seu pai, sempre permaneceu como um filho dos subúrbios imigrantes. Ele entendeu que deve retribuir aquilo que o futebol lhe deu”. A noção de retribuição, afinal, era essencial ao Onze da Independência. Foi exatamente para dar algo em retribuição à própria terra que eles abriram mão de privilégios e certezas. Deixaram para trás pessoas queridas, botaram em jogo suas próprias liberdades, entregaram o auge de seus talentos à causa. Terminaram na história, como a parte mais idealista de um sonho. Que, no fim das contas, se tornou realidade.
A história do Onze da Independência é um dos exemplos mais fortes de como o futebol transborda as quatro linhas e pode ter uma influência social, política e cultural. Neste caso, o propósito de um conjunto de jogadores fincou a bandeira da Argélia ao redor do mundo antes mesmo da libertação – como um elemento importante de diplomacia. Apresentaram os horrores da guerra a muita gente que não estava consciente, inclusive dentro da França. Já a partir da independência, aquele time floresceu como a base da seleção argelina para os anos vindouros. A concretização do que soava como utopia.
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Goleiros: Abderrahmane Boubekeur (Monaco), Ali Doudou (Bône), Abderrahman Ibrir (Olympique de Marseille)
Defensores: Mustapha Zitouni (Monaco), Dahmane Defnoun (Angers), Mohamed Soukhane (Le Havre), Chérif Bouchache (Le Havre), Smaïn Ibrir (Le Havre), Abdallah Settati (Bordeaux), Khaldi Hammadi (Stade Tunisien-TUN)
Meio-campistas: Mokhtar Arribi (Lens), Kaddour Bekhloufi (Monaco), Saïd Haddad (Toulouse), Ali Benfadah (Angers), Amar Rouaï (Angers), Hassen Chabri (Monaco), Abdelaziz Ben Tifour (Monaco), Abdelkader Zerrar (Hammam Lif-TUN), Boudjemaa Bourtal (Béziers)
Atacantes: Rachid Mekhloufi (Saint-Étienne), Abdelhamid Kermali (Lyon), Abdelhamid Bouchouk (Toulouse), Saïd Brahimi (Toulouse), Mohamed Maouche (Stade de Reims), Ahmed Oudjani (Lens), Amokrane Oualiken (Nîmes), Abderrahmane Soukhane (Le Havre), Abdelkader Mazouz (Nîmes), Mouhamed Bourricha (Nîmes), Abdelkrim Kerroum (Troyes), Hocine Bouchache (Le Havre), Saïd Amara (Béziers), Abdelhamid Zouba (Chamois Niortais)
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O futebol como um caminho à afirmação
A colonização francesa na atual Argélia se estabeleceu a partir de 1830. A ocupação tomou as principais cidades e promoveu uma emigração massiva de franceses ao norte da África, com presença notável também de italianos e espanhóis na região. Obviamente, a metrópole mantinha privilégios aos chamados “pied-noirs”, os europeus que viviam no território argelino. Foram criados quatro departamentos que repartiam a Argélia Francesa. Também existia uma estrutura de exploração e dominação, que restringia direitos da população nativa e a submetia às imposições dos colonizadores.
A ocupação francesa na Argélia foi mais violenta do que em outros territórios vizinhos, como Marrocos e Tunísia. Ainda assim, num processo parecido com o ocorrido em diferentes nações do norte da África, o futebol serviu como um caminho para a afirmação da população local a partir das primeiras décadas do Século XX. O primeiro clube ligado aos argelinos nativos surgiu em 1913: o Musulman de Mascara, naturalmente com raízes islâmicas e árabes. Gradativamente, o número de equipes da comunidade muçulmana ampliou. Tornavam-se espaços de convivência, bem como de resistência.
A década de 1930 seria importante para o amadurecimento do futebol na Argélia. A França comemorava o centenário da invasão. Já a população local podia se organizar ao redor das entidades esportivas. De certa maneira, os clubes de futebol conseguiam escapar da repressão à cultura e aos símbolos. Tinham sua dose de liberdade, inclusive para semear ideias anticoloniais. Porém, também existiam imposições. As agremiações de raízes locais, sobretudo as árabes, eram monitoradas por órgãos da metrópole francesa. Existia uma obrigação de que todas as equipes contassem com jogadores de origens europeias – inicialmente três, quando a regra foi instituída em 1928, enquanto tal quantidade aumentou para cinco atletas em 1935.
Neste momento histórico, o futebol já era extremamente popular na Argélia, com suas equipes divididas em três campeonatos – conforme os diferentes departamentos administrativos da colônia. Existiam mais futebolistas registrados na Argélia em 1934 do que na própria França. As partidas locais ofereciam um alto nível de animosidade, especialmente quando reuniam clubes com diferentes panos de fundo étnicos. As arquibancadas representavam a oposição entre diferentes comunidades, e brigas aconteciam com certa frequência. Já dentro de campo, em meio a esse caldeirão, os talentos floresciam. Não à toa, os melhores jogadores nascidos na Argélia passaram a atuar no Campeonato Francês a partir dos anos 1930 e alguns deles inclusive alcançaram a seleção.
O primeiro capitão da França em Copas do Mundo, Alexandre Villaplane, nasceu em Argel – com origem étnica francesa. Fez sua carreira toda no Campeonato Francês e morreu em 1944, executado por ser colaborador dos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Alguns convocados dos Bleus tinham inclusive origens em outras nações, como o hispano-argelino Joseph Alcazar e o ítalo-argelino Mario Zatelli. Os craques de raízes árabes e islâmicas da colônia também não eram ignorados. O melhor exemplo disso é o defensor Abdelkader Ben Bouali. Nascido na província de Chlef, o argelino ascendeu de uma família rica para o futebol e se tornou o primeiro jogador de origem árabe a ser convocado. Passou por clubes como o Montpellier e o Olympique de Marseille, enquanto em seu auge compôs a seleção francesa na Copa do Mundo de 1938, realizada em casa.
O estouro da Segunda Guerra Mundial freou o trânsito de atletas vindos da colônia. Ainda assim, um novo talento argelino despontou brevemente no futebol francês antes da invasão nazista. Ahmed Ben Bella fazia parte de um batalhão do exército em Marselha e vestiu a camisa do Olympique de Marseille. O meio-campista chegou a disputar uma partida, com gol nos 9 a 0 sobre o Antibes. Os dirigentes marselheses ofereceram um contrato profissional para o jovem, mas ele recusou para se juntar ao front. Ben Bella nunca mais voltou ao futebol de alto nível, mas posteriormente se tornou uma liderança da Frente de Libertação Nacional. Acabaria escolhido como o primeiro presidente da Argélia.
Contudo, a luta seria longa antes da ascensão de Ben Bella. Assim como o futuro presidente, muitos árabes fizeram parte da resistência durante a Segunda Guerra Mundial e auxiliaram na vitória dos Aliados. Em maio de 1945, a libertação da França do domínio nazista gerou uma grande comemoração também em cidades da Argélia Francesa. A comoção culminou em manifestações em prol da independência argelina. Na cidade de Sétif, a aparição de bandeiras alviverdes com o crescente vermelho gerou uma enorme repressão da polícia. Há divergências em relação ao número de mortos, mas o historiador Yves Bénot aponta que entre 6 mil e 8 mil argelinos pereceram no massacre.
Entre as testemunhas da tragédia estava um garoto de oito anos chamado Rachid Mekhloufi, exatamente o futuro craque do Onze da Independência. “Foi um momento muito difícil para todos os argelinos, para aqueles que viviam ali. O que vimos em 8 de maio de 1945 foi horrível. Aos olhos das crianças, era um desastre. Fiz perguntas, mas ninguém sabia me responder. Como os adultos, pessoas com armas… Eram metralhadoras, não fuzis. Foi uma coisa terrível. Não desejo para ninguém”, recontou Mekhloufi, à revista SoFoot. “Eu não conhecia as pessoas, mas eram jovens, mulheres, crianças. Isso ficou gravado em mim. Não consigo tirar da cabeça completamente. Tenho um freio, algo que sempre me segura. Quando fazia gols, não tinha alegria ou loucura, fazia os gols e pronto”.
A partir daquele momento, os movimentos em prol da independência começaram a se organizar de maneira mais sistematizada. A França se reconstruía após a Segunda Guerra Mundial, enquanto os anseios por uma nova ordem se fortaleciam em diversas colônias ao redor do planeta. Os anseios pela libertação da Argélia eram bastante fortes, a ponto da metrópole oferecer medidas paliativas. Os direitos aos cidadãos árabes passaram a aumentar, assim como a representatividade política. O que ainda assim não era suficiente para quem desejava o fim da dominação.
A formação da FLN e de seu time
A retomada do Campeonato Francês após a Segunda Guerra Mundial aumentou ainda mais o fluxo de jogadores das colônias rumo aos principais clubes da metrópole. A presença dos talentos argelinos nos times da França se tornou bem maior: 16 futebolistas de origem árabe e nascidos na Argélia desembarcaram no país na segunda metade dos anos 1940. O goleiro Abderrahman Ibrir virou um ícone do Toulouse, embora tenha passado também por Bordeaux e Olympique de Marseille. Disputou seis partidas pela seleção francesa entre 1949 e 1950. Já o meia Abdelaziz Ben Tifour vinha do futebol tunisiano, antes de se transformar num ídolo do Nice multicampeão. Conquistou dois títulos do Campeonato Francês e um da Copa da França. Virou jogador da seleção francesa, presente na Copa de 1954. Mesmo vestindo as cores dos Bleus, todavia, Ibrir e Ben Tifour não perdiam as raízes. A vida de astros na França não afastava os jogadores do noticiário de opressão e domínio na Argélia.
O ano de 1954 seria simbólico em vários âmbitos, muito além da Copa do Mundo disputada por Ben Tifour. A Frente de Libertação Nacional nasceu naquele momento, como principal organização política em prol da independência argelina. A luta na Indochina, que resultou na independência do Vietnã, serviu de inspiração ao novo movimento da Argélia. Já no futebol, o terremoto na cidade argelina de Chlef (então chamada de Orleansville) culminou na realização de um evento bastante emblemático em Paris. Para angariar fundos às vítimas, realizou-se um amistoso entre uma equipe formada por jogadores franceses contra outra que reunia atletas árabes do norte da África – argelinos, mas também marroquinos e tunisianos.
A partida marcada para outubro de 1954 era vista como um treino para a França. Dias depois, os Bleus encarariam a Alemanha Ocidental, recém-consagrada como campeã do mundo. Não à toa, a imprensa francesa passou a subestimar o quadro africano. O craque do outro lado era um veteraníssimo, Larbi Ben Barek, marroquino que tinha sido ídolo do Atlético de Madrid e do Olympique de Marseille. Outras figuras nascidas em Marrocos também eram importantes, enquanto os argelinos formavam a base principal. Abdelaziz Ben Tifour era uma das estrelas, ao lado de talentos que chegaram aos clubes franceses principalmente naqueles primeiros anos da década de 1950. No fim das contas, os árabes deram show e venceram por 3 a 2. Ben Barek se saiu tão bem que acabou convocado para enfrentar os alemães-ocidentais, em sua volta aos Bleus depois de seis anos longe da equipe. O marroquino Abderrahman Mahjoub também atuou contra os germânicos.
Aquela vitória da seleção do Norte da África acontecia num momento nevrálgico. As tensões políticas resultaram no estouro da Guerra de Independência da Argélia semanas depois, em novembro de 1954, com a Frente de Libertação Nacional se tornando protagonista no confronto com o exército da França. Enquanto isso, o futebol logo seria vislumbrado como um caminho para espalhar a causa da independência ao redor do mundo. O envolvimento de alguns apaixonados pela bola no seio da FLN auxiliaria na ideia. Um deles era o próprio Ben Bella, futuro presidente. Outro nome forte na entidade nacionalista era Mohamed Boumezrag, antigo meia de Valenciennes e Red Star Paris nas divisões de acesso, que chegou a passar pelo Bordeaux no início dos anos 1940. Ele é visto como o mentor do Onze da Independência – numa ideia que seguia algo já realizado anteriormente pela seleção basca, que viajou o mundo nos anos 1930 para divulgar e levantar fundos à causa republicana na Guerra Civil Espanhola.
Não há uma versão oficial sobre o surgimento do Onze da Independência. Algumas fontes apontam que o time foi concebido em 1956, durante um congresso que reunia diversas lideranças em prol da independência. Naquele momento, a FLN tinha força junto a estudantes e trabalhadores, mas o time de futebol poderia ser ainda mais impactante. Outras fontes afirmam que Boumezrag teve o estalo em 1957, durante o Festival Mundial da Juventude, realizado em Moscou. A partir disso, recebeu o apoio de Ben Bella, seu contemporâneo no Campeonato Francês, para levar em frente os planos. Fato é que Boumezrag foi o encarregado de organizar a formação do time e visitar diferentes atletas. Ele tinha certo poder no meio do futebol, como diretor da divisão regional da Federação Francesa de Futebol na Argélia Francesa.
Àquela altura, desde 1956, Marrocos e Tunísia tinham conquistado suas independências. Foram processos realizados na mesa de negociações, e não exatamente no campo de batalha, diante do caráter distinto que a presença da França teve em ambos os territórios – eram protetorados, não colônias. Enquanto isso, o exército francês tentava suprimir a luta da FLN em busca da soberania. Não queriam acumular outra derrota, depois do ocorrido na Indochina. A partir de setembro de 1956, a Batalha de Argel se tornou uma campanha essencial para os rebeldes, que acabariam derrotados neste confronto no ano seguinte. Paralelamente, o futebol se firmaria como um campo representativo em meio às tensões.
Em 1956/57, a Copa da França teve uma de suas vitórias mais surpreendentes de todos os tempos, conquistada pelo SCU El Biar. A equipe amadora de Argel disputava a competição francesa como representante da Divisão de Honra de Argel, uma das competições locais da colônia. Nos 16-avos de final, os azarões foram capazes de vencer por 2 a 0 o poderoso Stade de Reims, uma das grandes potências da Europa nos anos 1950 e vice-campeão da primeira edição da Copa dos Campeões em 1955/56. Os árabes, tantos deles simpáticos à causa da FLN, deixavam pelo caminho um time que servia de base à seleção francesa.
Menos de uma semana depois, porém, uma partida do próprio El Biar seria palco de um atentado no campeonato local de Argel. Uma bomba explodiu nas arquibancadas, matando oito pessoas durante a partida contra o Racing Universitaire Algérois, ligado à comunidade francesa. Três argelinos também seriam linchados durante o tumulto. O SCU El Biar chegou até as oitavas de final da Copa da França, eliminado pelo Lille. Já na decisão, vencida pelo Toulouse contra o Angers, o Estádio de Colombes seria palco de um assassinato. Na saída do estádio, um partidário da FLN baleou e matou Ali Chekkal, membro do parlamento francês e visto como um traidor por ser contrário à independência.
Diante do derramamento de sangue que ocorria, o Onze da Independência serviria como um elemento pacífico para transmitir a mensagem dos argelinos. Auxiliava o aumento expressivo de jogadores de origem árabe que atuavam no Campeonato Francês. De 1950 a 1957, 23 futebolistas argelinos se mudaram à França para atuar nos clubes da primeira divisão. Existia talento para que a FLN formasse uma equipe forte, desde que esses astros abraçassem o ideal. Para recrutar os atletas, Boumezrag contava com o apoio de Mokhtar Arribi, veterano com passagens por Sète e Lens, que àquela altura era jogador-treinador nas divisões de acesso pelo Avignon. Seria ele um dos técnicos do Onze da Independência.
Os primeiros jogadores contatados pela FLN eram os veteranos da seleção francesa. O goleiro Abderrahmane Ibrir já tinha se aposentado, mas aceitou voltar a calçar luvas para representar o Onze da Independência. Ainda mais importante seria a adesão de Abdelaziz Ben Tifour, vestindo a camisa do Monaco àquela altura. O veterano era considerado o mais comprometido com a causa da libertação nacional e se tornaria o capitão do Onze da Independência. Chegava a esconder armas em seu carro e as levava para os movimentos rebeldes, do outro lado da fronteira com a Itália. A presença de ambos os medalhões motivou a mobilização dos mais jovens.
Se de um lado Ben Tifour e Ibrir já tinham passado de seus auges, outros nomes estouravam no futebol de alto nível. Juntar-se à Frente de Libertação Nacional, mesmo que dentro de campo, era abandonar a fama e os salários. Também significava deixar suas famílias expostas, sobretudo aquelas que viviam na França. Apesar de tudo, eles compreenderam que a necessidade de usar seus talentos em prol da independência era mais importante.
Mustapha Zitouni era considerado um dos melhores zagueiros do futebol francês naquele momento. Muito técnico e inteligente dentro de campo, o defensor era visto como um dos precursores da marcação por zona. O jogador do Monaco era inclusive um nome habitual da seleção francesa. Participou da campanha de preparação rumo à Copa do Mundo de 1958, presente em três jogos na reta final de 1957. Já em março de 1958, o beque impressionou por sua atuação no empate por 2 a 2 contra a Espanha. Zitouni tinha a missão de marcar Alfredo Di Stéfano e encantou o craque. A ponto de, depois da partida, a Flecha Loira cortejá-lo para se transferir ao Real Madrid.
Reza a lenda que Di Stéfano se aproximou do adversário e afirmou que ele “deveria jogar pelo melhor time do mundo”. A resposta do argelino era de que, em breve, ele “realmente estaria no melhor time do mundo”. Era o Onze da Independência, com o qual já tinha se comprometido. “Tinha muitos amigos na França, mas a questão era maior do que nós. O que você faria se o seu país estivesse em guerra e você fosse convocado?”, refletiria o zagueiro, anos depois. De início, Zitouni hesitou quando recebeu o convite de Boumezrag. Depois, compreendeu que ele mesmo poderia ser um chamariz a outros compatriotas.
Enquanto Zitouni se transformava no pilar da defesa, a estrela do ataque seria Rachid Mekhloufi. O virtuoso atacante de 22 anos era um dos craques do Saint-Étienne e vivia o seu ápice, considerado um dos mais habilidosos e impetuosos do país. Conquistou o Campeonato Francês em 1956/57, no primeiro título da história dos Verts, como vice-artilheiro da equipe. Contribuiu com 25 gols, formando uma trinca famosa ao lado do holandês Kees Rijvers e do camaronês Eugène N'Jo Léa – este uma figura também importante na história do futebol francês, por, como advogado e intelectual, encabeçar a criação do sindicato de jogadores.
Mekhloufi conciliou a carreira com o serviço militar e, também em 1957, representou a França nos Jogos Mundiais Militares. Foi uma das estrelas na conquista dos Bleus no futebol, em competição realizada na Argentina. Também figurava na seleção francesa principal desde 1956, com quatro aparições. Nada que o impedisse de se identificar com a causa da FLN. Ao se comprometer com o Onze da Independência, Mekhloufi correu o risco de ser preso por deserção. Também existia o temor de que ele pudesse contar para seu pai, um policial, e isso expusesse os planos. Até por isso, o craque foi convidado à equipe depois dos demais. “Não hesitei por um segundo sequer. A grande maioria dos franceses não sabia nada sobre a situação na Argélia. Quando eles souberam do nosso comprometimento com a FLN, perceberam como o assunto era sério”, afirmaria Mekhloufi, posteriormente.
A fuga dos astros
Um intrincado plano seria traçado para a fuga do primeiro grupo de jogadores, da França rumo à Tunísia. Seriam naturalmente visados, diante do sucesso de muitos deles no Campeonato Francês. Naquela semana, os Bleus disputariam um amistoso contra a Suíça. Quatro jogadores que tinham se comprometido com a FLN ainda eram vistos como nomes possíveis rumo à Copa do Mundo de 1958: Ben Tifour, Zitouni, Mekhloufi e o ascendente Mohamed Maouche, cotado como o sucessor de Raymond Kopa na linha ofensiva do poderoso Stade de Reims. A fuga do território francês foi realizada a partir de 13 de abril de 1958, antes do embate contra os suíços e após a rodada da Division 1. Os heróis do Onze da Independência se dividiram em dois grupos: um que escapou pelo sul e outro mais ao norte.
A estratégia precisava ser meticulosa, para que os jogadores não fossem detectados e muito menos pegos pelas autoridades. Há anos os futebolistas de origem árabe eram monitorados dentro de seus próprios clubes. Ben Tifour conseguiu escapar sem grandes problemas. O astro alegou estar doente antes do compromisso do Monaco e rumou ao norte da Itália às vésperas da rodada. Os demais nomes em atividade no sul da França pegariam um trem até Roma, em vagões distintos. Zitouni estava acompanhado do goleiro Abderrahmane Boubekeur e do atacante Kaddour Bekhloufi, seus colegas no Monaco. Também viajou Amar Rouaï, atleta do Angers e adversário dos monegascos naquela rodada.
Zitouni chegou a ser interpelado dentro do trem por autoridades francesas. Um dos oficiais estava acostumado a ver o zagueiro no trem, indo fazer compras ou também tratamentos médicos em cidades italianas. Só questionou a ausência da esposa. Zitouni afirmou que estava se divorciando. Na verdade, semanas antes, ele tinha se afastado da esposa justamente para evitar qualquer suspeita, após receber o apoio dela para se juntar ao Onze da Independência. Era um plano para passar despercebido. Mesmo os demais familiares do casal não sabiam da fuga e se surpreenderam com as notícias da separação. No fim das contas, a armação manteve ambos em segurança. O trem cruzou a fronteira e o quarteto de astros árabes conseguiu chegar a Roma sem empecilhos.
O grupo de jogadores que deixou o norte da França fez o percurso de carro. Não seria simples o resgate, especialmente depois que Rachid Mekhloufi sofreu uma concussão durante o jogo do Saint-Étienne e precisou ser hospitalizado, sob observação. Até parecia que o atacante se tornaria um desfalque sentido ao Onze da Independência. No entanto, Arribi o tirou do hospital, com membros da FLN disfarçados de enfermeiros. Aquele grupo de atletas também contava com Abdelhamid Kermali, então atacante do Lyon – e que, décadas depois, seria o técnico da Argélia na conquista inédita da Copa Africana de Nações em 1990. Já do Toulouse vinham os atacantes Abdelhamid Bouchouk e Saïd Brahimi, ambos presentes no time campeão da Copa da França de 1956/57. Brahimi chegou a disputar duas partidas pela seleção francesa em 1957, tornando-se o primeiro árabe a balançar as redes pelos Bleus.
O plano da FLN ao redor dos jogadores que deixariam o país mais ao norte do território era atravessar a fronteira com a Suíça, de carro. No entanto, a estratégia correu sérios riscos na fronteira. O veículo foi parado por policiais e o temor da detenção era real. No entanto, os guardas não suspeitaram da fuga e até mesmo pediram autógrafos aos jogadores. Não era sempre que se encontrava um grupo de talentos daquele, ídolos de clubes distintos. Depois que o automóvel chegou à Suíça a salvo, esse grupo de futebolistas se juntou aos demais na Itália.
Cabe dizer que nem tudo foi um sucesso na empreitada do Onze da Independência. Nem todos os jogadores argelinos em atividade no Campeonato Francês abraçaram o pedido de se juntar à FLN. Um nome importante neste sentido é o de Kadar Firoud, ex-jogador da seleção francesa e então treinador do Nîmes. Seria vice-campeão da Division 1 naquela temporada de 1957/58, depois se transformando no técnico com mais partidas disputadas na história do Campeonato Francês – superado depois apenas por Guy Roux. Também se ausentou o jovem atacante Mahi Khennane, ídolo do Rennes e que depois defenderia a própria seleção da Argélia, com a conquista da independência.
E há aqueles que terminaram realmente presos na tentativa de fuga. Mohamed Maouche teve a chance de fugir durante uma turnê do Stade de Reims pela União Soviética, mas não estava tão certo de sua decisão. Voltou para a França e, quando tentou deixar o país, foi detido. O mesmo aconteceu com Hacène Chabri, do Monaco. Por conta da deserção, ambos passaram alguns meses na detenção. Apesar disso, nenhum deles desistiu do ideal e eventualmente se juntaram ao time da FLN nos anos seguintes. Outros dois grupos de futebolistas argelinos fugiram do território francês, primeiro em 1959 e depois em 1960.
Mohamed Maouche chegou a liderar um dos planos de fuga, ao lado da esposa, Khadidja Maouche – que trabalhava com um grupo de advogados argelinos em defesa dos membros da FLN. Os dois tinham acabado de se casar e ganharam autorização do Stade de Reims para passar a lua de mel em Paris. Graças a isso, tinham carta branca para viajar o país. A bordo de um conversível verde, os Maouche passaram por diferentes cidades e reuniram outro grupo de desertores do Onze da Independência. Khadidja tinha a missão de contatá-los, enquanto Mohamed os convencia. Ninguém sabia que eram realmente um casal. Ao final da jornada, conseguiram chegar em Genebra. “Fomos os primeiros embaixadores da revolução e das pessoas argelinas. A maior parte das pessoas não sabia que havia uma guerra de verdade na Argélia. Falávamos com as pessoas depois das partidas e dávamos entrevistas, assim elas descobriam o que acontecia no nosso país. Éramos verdadeiros embaixadores”, resumiria Mohamed, à BBC.
A chegada ao norte da África
O primeiro grupo de jogadores que deixou a França para se juntar ao Onze da Independência ainda precisou enfrentar uma longa jornada. Na Itália, eles compareceram à embaixada da Tunísia. O presidente do país vizinho, Habib Bourguiba, não apenas apoiava a independência da Argélia: ele mesmo tinha sido uma figura central ao futebol de seu país, como dirigente do Espérance – um clube fincado na comunidade árabe e também foco de resistência. A viagem do elenco até Tunes aconteceu de barco, num momento em que a repressão francesa à independência argelina se tornava mais intensa, sobretudo com ataques aéreos. Na capital tunisiana, mesmo os membros da filial local da FLN não estavam cientes da formação do time de futebol. Existia o temor dos próprios atletas de que o projeto não saísse do papel, até que Boumezrag se encontrasse com o elenco e revelasse que, de fato, a ideia tinha sido mantida sob sigilo até então. O primeiro ato do Onze da Independência foi conceder uma entrevista coletiva no lobby do Hotel Majestic. Explicavam que não eram contra a população francesa, mas sim favoráveis à causa argelina.
Obviamente, o episódio causou enorme repercussão na França. As manchetes dos jornais esportivos apontavam o desaparecimento dos atletas argelinos. Logo ficou claro que eles fugiram de maneira consciente, tornando-se embaixadores da FLN. Então vieram as críticas, especialmente àqueles que defendiam a seleção francesa. Zitouni e Mekhloufi, sobretudo, foram pré-convocados pelos Bleus para a Copa do Mundo. Passaram a ser atacados, em contraposição a “exemplos” como Just Fontaine e Raymond Kopa – dois jogadores de origem estrangeira que “não viraram as costas para a França”. O caso de Fontaine naturalmente era mais visado, nascido no Marrocos – embora “pied-noir”, por ser filho de uma espanhola com um francês.
O próprio Fontaine, no entanto, entendia os companheiros. Ele sabia da fuga de antemão, como era amigo de Maouche, seu parceiro de ataque no Stade de Reims. Mesmo assim, manteve segredo. “Todo mundo entende os motivos pelos quais eles deixaram a seleção. Eu os entendia melhor que os outros, porque joguei por Marrocos na época do protetorado. É uma pena para as suas carreiras, mas eles tinham uma missão a cumprir e cumpriram. Eles eram argelinos acima de tudo e sentiam a alma argelina, não francesa”, avaliaria Fontaine, tempos depois. O artilheiro da Copa do Mundo ainda analisava que a situação dos marroquinos era diferente, porque o protetorado oferecia condições melhores de vida que o colonialismo praticado na Argélia.
E não existia qualquer mágoa dos jogadores da França pela decisão dos colegas argelinos em formar o Onze da Independência. Há uma noção clara de que, com os desertores, os Bleus poderiam chegar ainda mais fortes para a Copa do Mundo de 1958, em que fizeram a histórica campanha rumo às semifinais – liderados exatamente por Kopa e Fontaine. Mas a amizade prevalecia, a ponto de Zitouni ser homenageado pelos companheiros enquanto estes estavam na Suécia. Depois da jornada marcante, o elenco enviou um cartão-postal assinado por todos, dando apoio ao zagueiro argelino em sua causa com a FLN.
Mekhloufi era outro que, de certa maneira, tinha muito a perder. O reconhecimento ao talento de Fontaine e Kopa também poderia ter mudado a sua história, aos 22 anos. Porém, o craque se deu por satisfeito por impactar na história de seu próprio país. “A seleção francesa era parte do passado. Foi uma escolha. Eu gostaria de ter defendido a seleção argelina numa Copa do Mundo. Poderíamos ter conseguido, porque contávamos com um grande time. Infelizmente, não podíamos disputar as Eliminatórias. Mas você sabe, você nunca deve se arrepender de nada”, comentaria o veterano. Mekhloufi ainda teve a chance de estar presente numa Copa do Mundo: era técnico da Argélia no Mundial de 1982, em que o time só não passou de fase porque Alemanha Ocidental e Áustria combinaram o resultado para desbancar as Raposas do Deserto.
No caso de Mekhloufi, mais importante ainda foi o apoio que recebeu dentro de casa. Seu pai e sua mãe não tinham conhecimento da fuga até ela acontecer. Era seu jeito de protegê-los, sem que as autoridades francesas soubessem, ainda mais com a família distante em Sétif. No primeiro encontro com o pai após a formação do Onze da Independência, o policial entregou ao filho um mandado de prisão por deserção que havia chegado em suas mãos. Ainda assim, estava orgulhoso de Mekhloufi e apoiava o movimento revolucionário, por mais que precisasse ser discreto. Preferia não expor o jovem a mais riscos.
Já o cerco ao Onze da Independência também se desdobrou nas entidades esportivas. A Federação Francesa de Futebol suspendeu todos os atletas que fugiram e pediu que a Fifa desfiliasse qualquer seleção que enfrentasse o time da FLN. A organização internacional não chegou a tanto, mas ameaçou realizar sanções contra os adversários dos rebeldes. O Onze da Independência também tentou se filiar à Fifa e à Confederação Africana de Futebol como representante da seleção da Argélia, o que não foi aceito naquele primeiro momento. Apesar dos riscos, alguns países resolveram peitar a Fifa e apoiar o movimento de libertação defendido por aqueles jogadores.
A turnê mundial
O Onze da Independência fixou sua base em Tunes. Por lá aconteciam os treinamentos comandados por Mohamed Boumezrag e Mokhtar Arribi. De início, os jogadores que desertaram ganharam a companhia de Khaldi Hammadi, defensor argelino que atuava no futebol tunisiano. Nos meses seguintes, o grupo se encorpou com outros compatriotas que abandonaram o Campeonato Francês. O governo da Tunísia ofereceu asilo político também a familiares dos atletas que desejavam sair da França. Cada futebolista passou a ganhar um auxílio-moradia e um salário mensal. Zitouni tinha o privilégio de receber mais, sobretudo por ter recusado a proposta do Real Madrid para se manter fiel à causa. O material esportivo era bancado pela FLN.
As primeiras partidas do Onze da Independência aconteceram já em abril de 1958. A intenção da FLN era de que o time mantivesse sua atividade em paralelo à Copa do Mundo, para chamar mais atenção. Naqueles primeiros compromissos, os argelinos aplicaram goleadas acachapantes sobre clubes tunisianos e um combinado local. Já o primeiro duelo contra uma seleção oficial aconteceu em maio de 1958, contra a Tunísia. O Onze da Independência foi impiedoso dentro de campo, com uma saraivada por 5 a 1. Naquele mesmo mês, o time da FLN disputou um quadrangular que envolvia outras quatro seleções do norte da África: Marrocos, Líbia e Tunísia. Os argelinos bateram os marroquinos por 2 a 1, antes de surrarem os tunisianos por 5 a 1 na decisão.
Naquele momento, o Onze da Independência já usava o verde e branco no uniforme, com as cores que simbolizariam a soberania da Argélia. Além disso, um pré-requisito para que os jogos acontecessem era a execução do hino nacional argelino – composto antes da libertação. O caráter nacionalista de cada apresentação trouxe problemas aos adversários, de fato. Por conta daqueles duelos em maio, as federações de Marrocos e Tunísia foram investigadas pela Fifa. Os dois países tentavam se filiar à entidade e o processo se arrastou até agosto de 1960. Por conta disso, os marroquinos acabaram declinando a outro duelo previsto para o final de 1958.
Em junho de 1958, o Onze da Independência disputou amistosos na Líbia, contra times e combinados locais. O mesmo se repetiu no Marrocos, em novembro de 1958. O selecionado da FLN venceu todos os 15 jogos que encarou naquele ano, com 81 gols marcados e somente 13 sofridos. Era uma máquina de jogar bola, com um futebol extremamente atrativo e cativante. A liberdade no estilo era evidente, e impulsionava mais a qualidade técnica de tantos craques. Se existia um pano de fundo político, que trazia o público partidário da causa, logo os fãs de futebol passaram a ser atraídos pelo espetáculo. E, desta maneira, também acabavam se conscientizando sobre os horrores da Guerra de Independência da Argélia. Eram momentos cruciais, com a intensificação dos combates à medida que a França se afundava em crises internas.
A partir de 1959, o Onze da Independência passou a viajar por outros continentes. Rodou por Jordânia e Iraque, entre janeiro e fevereiro, novamente enfrentando clubes e combinados locais. Uma das partidas em Bagdá se tornou marcante, pela maneira como o público invadiu o campo para abraçar os heróis argelinos em sua luta contra a dominação. Em março, o Onze da Independência voltou a golear a seleção da Tunísia por 4 a 0. Já a partir de maio, começou uma turnê pelo Leste Europeu. Com o apoio político à FLN no contexto da Guerra Fria, diversas nações da Cortina de Ferro abriram suas fronteiras para os craques argelinos se apresentarem. Encararam uma série de amistosos contra clubes de Bulgária, Romênia, Hungria, Polônia e União Soviética.
Até pela conotação política, o Onze da Independência de fato era recebido como um representante diplomático. Vários chefes de estado se encontraram com o time. Na sequência da jornada, o quadro da FLN atuou na China e também no recém-independente Vietnã do Norte. Os argelinos chegaram a enfrentar a seleção vietnamita, com goleada por 5 a 0 dos africanos. Depois, os craques passaram ainda um tempo na China, a convite do governo, para oferecer instruções sobre a prática do futebol em instituições de ensino locais. Na volta para casa, durante uma escala do voo, existiu até mesmo o rumor de que o Onze da Independência poderia enfrentar a seleção da Alemanha Ocidental, mas os riscos de uma punição preveniram qualquer confronto. Ainda assim, os rebeldes foram convidados a assistir a um jogo do Eintracht Frankfurt na tribuna de honra.
O Onze da Independência se limitou a poucos jogos em 1960, com seus compromissos restritos à Líbia. Mesmo assim, os argelinos bateram a seleção local por 6 a 1. Já em 1961, o time da FLN realizou uma nova turnê pelo Leste Europeu. Disputou partidas na Iugoslávia, na Bulgária, na Romênia, na Hungria e na Tchecoslováquia. Foi nesta viagem que aconteceu o resultado mais marcante: uma goleada por 6 a 1 sobre a seleção olímpica da Iugoslávia. Embora não fosse o time principal, a Iugoslávia tinha sido campeã olímpica no ano anterior e reunia jogadores de destaque do seu primeiro quadro. Além do mais, os iugoslavos carregavam consigo a fama de oferecer o futebol mais técnico da Europa Oriental. Acabaram engolidos pelo show dos argelinos, também exímios com a bola nos pés. Mais de 80 mil pessoas presenciaram o espetáculo no Marakana, em Belgrado.
Há divergências de registros em relação aos resultados da turnê do Onze da Independência e mesmo em relação aos adversários. Algumas fontes apontam que o time da FLN enfrentou as seleções oficiais de Bulgária, Romênia e Hungria, o que não é compartilhado por todos os estudos. A contagem mais aceita, do historiador Michel Nait-Challal, aponta para 83 partidas – com 57 vitórias e 12 derrotas, além de 349 gols anotados e 119 sofridos. O consenso fica mesmo sobre a força da mensagem transmitida por aqueles futebolistas, assim como pela qualidade do futebol apresentado.
Em 1961, todavia, o cenário se tornou mais duro para o Onze da Independência. Os combates na Argélia se intensificaram, assim como a Tunísia chegou a entrar em conflito com a França por três dias. As partidas da FLN se tornaram realmente perigosas. Em outubro de 1961, cerca de 300 pessoas foram mortas em Paris num massacre realizado pela polícia, diante de uma manifestação em apoio à Frente de Libertação Nacional que reuniu mais de 30 mil pessoas. Neste período, os membros do Onze da Independência passariam a se ocupar em equipes amadoras da Tunísia e da Líbia, como jogadores ou mesmo treinadores. Alguns deles já desejavam retomar suas carreiras profissionais.
Enfim, a independência
O fim do exílio esportivo para os membros do Onze da Independência aconteceu em 29 de junho de 1962. A Federação Francesa de Futebol retirou a suspensão contra os jogadores e permitiu que eles voltassem aos seus clubes. A vitória da FLN no campo político era questão de tempo. Em 1° de julho, um referendo realizado na Argélia teve 99,72% dos votos favoráveis à libertação. Por fim, a independência foi assinada em 5 de Julho de 1962 – data recordada inclusive no nome do principal estádio do país. Historiadores argelinos estimam que 1,5 milhão de pessoas morreram durante os oito anos de guerra. Esse número é de 300 mil mortos, conforme historiadores franceses. Cabe dizer que outros episódios sangrentos ocorreram também depois do tratado de paz, sobretudo em represália aos apoiadores da colonização e aos “pied-noirs” que seguiam no território argelino.
Os jogadores do Onze da Independência seriam ainda mais aplaudidos como heróis nacionais. Primeiro presidente da Assembleia Nacional da Argélia, Ferhat Abbas declarou que o esforço dos jogadores “antecipou em dez anos a libertação do país”. Já num ato bastante simbólico, o presidente Ahmed Ben Bella filiou os argelinos antes à Fifa do que à ONU. Era uma maneira de transmitir a ideia sobre como a unidade nacional foi conquistada também dentro de campo. A estreia oficial da seleção aconteceu em janeiro de 1963, num amistoso contra a Bulgária. Vitória das Raposas do Deserto por 2 a 1.
Durante os anos seguintes, os jogadores do Onze da Independência seguiam formando a base da seleção da Argélia que disputava amistosos. Alguns resultados foram notáveis. Em 1963, as Raposas do Deserto golearam por 4 a 0 a Tchecoslováquia, vice-campeã do mundo meses antes. Em 1964, venceram a Alemanha Ocidental e empataram com a União Soviética. Já em junho de 1965, a Argélia pôde medir forças com o Brasil bicampeão mundial. Nesta, a Canarinho se deu melhor e ganhou por 3 a 0. Pelé, Dudu e Gérson anotaram os gols em Oran. Manga, Djalma Santos, Bellini, Orlando Peçanha, Ademir da Guia e Garrincha também entraram em campo na equipe de Vicente Feola. Mekhloufi era o astro do lado argelino, mas numa atuação mais defensiva da equipe da casa.
Antes da partida, a Seleção chegou a ser recebida no palácio presidencial da Argélia. O presidente Ben Bella classificou aquela visita do Brasil como “um acontecimento da mesma importância da próxima Conferência Afro-Asiática para o povo argelino, não no plano diplomático, mas no esportivo e social”. O governante, nos tempos de revolucionário, tinha visto jogos in loco da Seleção na Copa de 1958. Estava previsto inclusive um segundo amistoso contra os brasileiros na sequência daquela semana, em Argel, que não aconteceu. Exatamente dois dias depois da vitória brasileira por 3 a 0 em Oran, um golpe de estado tirou Ben Bella do poder. A queda do presidente foi liderada pelo Ministro da Defesa, Houari Boumédiène, diante da insatisfação de antigos membros da FLN com o governo. O presidente passaria 14 anos em prisão domiciliar, mas não houve mais derramamento de sangue no golpe. Para não preocupar o elenco brasileiro, a CBD só comunicou a instabilidade política quando os jogadores se preparavam para deixar o país e viajar a Lisboa.
Os herdeiros do Onze da Independência
Com a assinatura da libertação da Argélia em 1962, nem todos os jogadores do Onze da Independência quiseram voltar para a França. Alguns deles seguiram suas carreiras no próprio futebol argelino, casos de Mustapha Zitouni e Abdelaziz Ben Tifour. Existiam temores sobre a maneira como seriam recebidos no retorno à França. Mekhloufi, por sua vez, preferiu retomar sua história no Saint-Etienne. O atacante ainda passou pelo Servette brevemente, antes de assinar com os Verts. Tinha o apoio do técnico Jean Snella, o responsável por sua ascensão nos anos 1950 e com quem também trabalhou na Suíça, até voltar ao ASSE em conjunto. Também foi respaldado pelo presidente alviverde Geoffroy Guichard.
“Saint-Étienne é minha segunda cidade natal. Assim que aconteceu o cessar-fogo, o tratado de paz, não vi razão para ir a outro lugar diferente da França e de Saint-Étienne. Sentia que deveria voltar para agradecer aos jogadores, que deixei quatro anos antes. Agradecer por não me rejeitarem. Meus companheiros foram magníficos e os torcedores esperavam pelo jogador, não pelo guerreiro”, resumiria o atacante, à SoFoot.
Não se sabia o que esperar do retorno de Mekhloufi ao Saint-Étienne. O atacante era amado pela torcida, mas visto também como um traidor por parte dos franceses. A bola falaria por si. Apesar da recepção distante de início, o craque mostrou como sua habilidade estava até mais apurada. Voltou para liderar os Verts a novos períodos gloriosos. O Saint-Étienne passou pela segunda divisão em 1962/63. A equipe subiu logo na primeira tentativa e, com o retorno de Mekhloufi e Snella, reconquistou de imediato o título da primeira divisão do Campeonato Francês em 1963/64. Encerrou o jejum que durava sete anos. O craque também teria enorme influência nas conquistas da Division 1 em 1966/67 e em 1967/68.
Décadas depois, Mekhloufi afirmaria: “Fui dois tipos de jogadores. No começo, era um jogador oportunista que aproveitava a mínima brecha para marcar um gol. Tudo o que eu conseguia pensar era em marcar. Depois da epopeia com o time da FLN, eu me tornei um mágico. Um jogador muito tático e técnico, enquanto ainda marcava gols. Meu temperamento melhorou, assim como meu físico. Meu jeito de olhar o futebol melhorou, então foi uma conquista total. No time da FLN, estava cercado de jogadores maravilhosos, como Zitouni e Ben Tifour. Eles me ensinaram a jogar, a calcular o jogo, não a trapacear. Isso foi algo muito bom”. Valeu também o intercâmbio com outras escolas de futebol ao redor do mundo: “Aprendi muito olhando para os outros. Vi nos húngaros uma invenção criativa sempre nova. Os iugoslavos são grandes artistas da bola, mas também lutadores. Na China e no Vietnã também aprendi algo, a alegria de jogar e a simplicidade no jogo, qualidades que tendemos a negligenciar”.
A despedida de Mekhloufi do Saint-Étienne não poderia ser mais simbólica. O atacante não tinha boa relação com o técnico Albert Batteux, que substituiu Jean Snella no comando do clube e havia treinado a França na Copa de 1958. Isso acelerou a saída do argelino em maio de 1968, rumo ao Bastia. O último jogo, no entanto, teve ares lendários: Mekhloufi liderou a conquista da Copa da França de 1967/68. Anotou os dois gols dos Verts na virada por 2 a 1 sobre o Bordeaux. Durante a entrega da taça, o presidente francês Charles de Gaulle (à frente do país desde 1959, inclusive nos anos finais da guerra) estava nas tribunas. Cumprimentou o argelino e declarou: “A França é você”.
O elenco do Onze da Independência voltou a se reunir em 1970, mas por um motivo trágico: o falecimento de Abdelaziz Ben Tifour num acidente de carro. À medida que os antigos veteranos se aposentaram, suas influências se desdobraram no comando da seleção. Mekhloufi transmitiu seu conhecimento ao brilhante time dos anos 1980. Já Abdelhamid Kermali liderou a seleção de 1990 à conquista da Copa Africana de Nações. O ex-atacante costumava contar as histórias com o Onze da Independência para incentivar as Raposas do Deserto na competição continental. Aquele título seria o marco final de um período imponente do futebol argelino. A partir de 1992, uma guerra civil estourou no país. Seriam dez anos de conflito, com mais de 150 mil vítimas fatais.
Até pelo derramamento de sangue no período, ver a consagração de uma figura como Zidane era importante aos argelinos, mesmo que ele vestisse a camisa da França. O ato de defender os Bleus não significava que o craque renegasse sua origem como filho de argelinos – ele entendia que poderia existir uma conciliação entre suas identidades. Teve uma visão parecida com a de Mekhloufi, quando o velho ídolo resolveu voltar ao Saint-Étienne. A imagem de Zizou apenas não atenuou as tensões do primeiro amistoso entre França e Argélia, disputado em 2001, no Stade de France. Existiu uma tentativa mal sucedida de transmitir uma mensagem de paz. Foi naquele jogo que Zidane manifestou sua predileção por um empate, por mais que estivesse ali para vencer. De fato, os Bleus provaram sua força e golearam as Raposas do Deserto por 4 a 1. Porém, a partida sequer chegou ao fim. O público argelino no estádio vaiou o hino francês e realizou diversas manifestações de orgulho nacional, até pelo preconceito sofrido na sociedade local como descendentes de imigrantes. Na reta final do segundo tempo, uma massiva invasão de campo provocou o abandono do amistoso, com os jogadores saindo direto aos vestiários.
A seleção da Argélia passava por uma reconstrução naquele momento. Existia uma verdadeira “geração perdida”, com as vítimas da guerra civil e também os talentos que não puderam se desenvolver num país em destroços. O reerguimento contou com o apoio dos veteranos do Onze da Independência, a exemplo do próprio Mekhloufi. Em 2010, o ex-atacante criou a Fundação FLN, para desenvolver o futebol na Argélia através de escolinhas. Enquanto isso, o fortalecimento da seleção argelina dependeu da presença numerosa dos filhos de imigrantes que nasceram na França. Grande parte do elenco que disputou as Copas de 2010 e 2014 nasceu na velha metrópole, assim como do time campeão da Copa Africana de Nações de 2019. Puderam fazer essa escolha de coração, sem serem punidos como desertores. A possibilidade de decidir o próprio caminho, seja pelos Bleus ou pelas Raposas do Deserto, também se deve ao heroísmo do Onze da Independência. A libertação perdura em diferentes âmbitos.
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Este texto se baseou em dezenas fontes – SoFoot, World Soccer, Jornal dos Sports, Última Hora, BBC, Le Monde, RSSSF, entre outras. Em português, fica a recomendação ao artigo “O Atacante da Revolução”, de Roberto Jardim, publicado no Ludopédio. O texto faz parte do livro Democracia Fútbol Club, que inclui os perfis de 11 jogadores e um técnico politicamente engajados. Rachid Mekhloufi é o homenageado do Onze da Independência.