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Os 90 anos de Evaristo de Macedo: a distinta carreira de um talento internacional brasileiro

Muito antes da globalização do futebol, Evaristo de Macedo fez história pelo Barcelona e foi muito respeitado no Real Madrid

Sem dúvida é um currículo e tanto o do ex-atacante Evaristo de Macedo, que completou 90 anos na última quinta-feira. Revelado no Madureira, tradicional celeiro de craques do subúrbio carioca, ele se consagrou no Flamengo como parte de um esquadrão histórico do clube e do futebol brasileiro, tricampeão carioca em meados dos anos 1950. Na Seleção, estabeleceu um recorde de gols que ainda perdura e foi titular nas Eliminatórias para a Copa de 1958. Em seguida, embarcou para a Espanha, onde se fez ídolo no Barcelona e muito respeitado no Real Madrid, feito ainda mais significativo num momento bem distante da atual globalização do futebol.

O começo

O início de Evaristo (o segundo na imagem) nos juvenis do Madureira

Poderia-se dizer que Evaristo de Macedo Filho, carioca nascido a 22 de junho de 1933 no Engenho Novo e criado no Grajaú, teve a bola no sangue, já que seu pai havia sido goleiro e integrado o elenco do Fluminense nos últimos anos do amadorismo no futebol do Rio. Mas os dois tiveram trajetórias bem distintas: em 1933, quando teve de decidir entre jogar futebol sob o novo regime profissional e tocar um negócio de materiais de construção, o pai optou pelo segundo. Já o filho, profissionalizado, conheceria o mundo como jogador e treinador.

Na infância, o garoto Evaristo deixava a confortável casa no Grajaú, bairro de classe média da Zona Norte do Rio, para se embrenhar pelos campinhos de pelada que ainda existiam nas redondezas. Também era levado por um tio para assistir ao Flamengo, seu time de coração, onde jogava seu ídolo Zizinho. Ainda faltavam alguns anos para a inauguração do Maracanã, não muito distante de onde Evaristo morava. Mas em meados da década de 1940, ele deixaria a cidade para fazer o curso ginasial no renomado Instituto Granbery, em Juiz de Fora.

De volta ao Rio, na virada da década, um colega lhe chamou para acompanhá-lo num teste que faria no Madureira. Na entrada, foi convidado a também tentar a sorte e, acostumado com os jogos contra garotos mais velhos no Granbery e por equipes amadoras suburbanas, Evaristo se saiu muito bem enfrentando jovens da mesma idade e foi chamado para retornar a Conselheiro Galvão no dia seguinte. Era o pontapé inicial da carreira de jogador – ainda que sem deixar de lado os estudos, uma condição imposta por seu pai.

No Madureira, sua ascensão seria rápida. Suas atuações pelos juvenis o levaram ao escrete carioca da categoria, pelo qual seria bicampeão da Taça Paulo Goulart de Oliveira. No time de cima, fez duas partidas pelo Campeonato Carioca já em 1951. No início do ano seguinte, integrou o elenco principal em uma excursão pela América do Sul, chegando a balançar as redes numa goleada de 6 a 1 sobre o Everest, do Equador, e foi convocado pela seleção brasileira olímpica para a disputa dos Jogos de Helsinque, na Finlândia, no mês de julho.

Embora Evaristo não chegasse a entrar em campo em Helsinque, aquela foi uma boa experiência, fazendo parte do grupo que reunia nomes que logo se projetariam no cenário nacional como o lateral Paulinho de Almeida, o zagueiro Zózimo e os atacantes Larry, Humberto Tozzi e Vavá. E ao retornar, faria um ótimo Campeonato Carioca como titular do Madureira. O Tricolor Suburbano terminou em oitavo entre 11 clubes, mas teve no jovem Evaristo seu artilheiro com 11 gols – apenas dois a menos que o consagrado Ademir, do Vasco.

A chegada à Gávea

O jovem Evaristo com a faixa de campeão carioca de 1953

Talento cobiçado, Evaristo passou a receber propostas dos gigantes da cidade. Seu destino quase foi o Vasco ou o Fluminense, mas quando o Flamengo o chamou, por meio do dirigente Francisco Abreu, não houve como recusar o clube do coração. Na Gávea, Evaristo assinaria em 11 de março seu primeiro contrato profissional, já que ainda atuava como amador no Madureira. E sua chegada coincidiria com a do técnico paraguaio Manuel Fleitas Solich, trazido pelo presidente Gilberto Cardoso para iniciar uma revolução no futebol rubro-negro.

Sua estreia aconteceria exatamente um mês depois de assinado o contrato. E seria triunfal. No Maracanã, o Flamengo recebia o Santos pelo Torneio Rio-São Paulo e perdia por 2 a 1 a apenas sete minutos do fim do jogo quando Evaristo, na reserva, foi chamado para entrar no lugar do centroavante Adãozinho. Logo em um de seus primeiros toques na bola, recebeu passe do ponta Esquerdinha e empatou o jogo. Não satisfeito, um minuto depois abriu a brecha na defesa santista para que o mesmo Esquerdinha decretasse a virada para 3 a 2.

Aquela era a segunda partida do time sob o comando de Fleitas Solich, que utilizaria o Rio-São Paulo para conhecer o elenco e as características de cada jogador e, aos poucos, modelar o time para a principal competição da temporada, o Campeonato Carioca. Para Evaristo, no entanto, seu primeiro ano na Gávea coincidiria com seu curso no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva. Além da rotina dividida entre o serviço militar e os treinos e jogos, seria difícil para Evaristo, num primeiro momento, encontrar espaço no ataque rubro-negro.

Naquela temporada, em que Solich lançava as bases de seu trabalho no clube, o paraguaio optou por um time-base quase imutável na campanha que levaria os rubro-negros ao título carioca após nove anos. O quinteto titular do ataque foi formado na maioria dos jogos por Joel, Rubens, Índio, Benítez e Esquerdinha. Ao longo do ano de 1953, entre jogos de competição e amistosos, Evaristo somaria 18 partidas e cinco gols pelo Fla (pelo Carioca, foram apenas quatro jogos e um gol). Mas o atacante ganharia mais espaço na temporada seguinte.

Representante de Solich em campo

Marcando pelo Flamengo de Solich na Europa, símbolo de futebol moderno

Evaristo ganhou mais rodagem durante a excursão europeia feita pelo Flamengo em abril e maio de 1954 e em seguida no Torneio Rio-São Paulo, realizado em paralelo à Copa do Mundo da Suíça, para a qual os rubro-negros tiveram convocados o volante Dequinha, o meia Rubens e o atacante Índio. Além das boas atuações suprindo os desfalques, o atacante se revelava um jogador muito em sintonia com o estilo e as ideias de futebol que Solich vinha implementando, já com resultados concretos, no time rubro-negro desde o ano anterior.

Na contramão do que se ainda observava no futebol brasileiro, principalmente no carioca, em que predominava o jogo lento, cadenciado e centrado na figura do virtuoso, Solich implementara no Flamengo um futebol veloz, objetivo, solidário, de toques curtos, frequentes trocas de posições e deslocamentos, defendendo e atacando em bloco. Evaristo era, por sua vez, um jogador versátil, inteligente, que sabia jogar tanto como referência de área quanto atraindo a marcação para fora dela, abrindo espaços para infiltrações dos companheiros.

“A partir do momento em que ganhei a condição de titular, nunca mais fui questionado. Tinha um papel de líder no time, o Solich gostava muito do meu futebol e gostava de conversar comigo. Era uma espécie de curinga dele, por jogar em todas as posições”, relembrou ao livro “Os Dez Mais do Flamengo”, de Roberto Sander. Com efeito, na campanha do bicampeonato em 1954, Evaristo atuaria em 20 das 27 partidas, marcando 14 gols e sendo utilizado em quatro posições diferentes – vestiu as camisas 8, 9, 10 e até a 11 na reta final.

Entre os gols marcados, vale mencionar o que decretou a difícil vitória de 1 a 0 ao Flamengo sobre o Bangu de seu ídolo Zizinho e os quatro que anotou na goleada de 5 a 0 sobre seu ex-clube, o Madureira, ambos pelo primeiro turno. Mas uma atuação digna de nota aconteceu na reta final, num jogo em que ele não balançou as redes: o clássico diante do Vasco pela penúltima rodada do terceiro turno (ou turno extra), em 12 de fevereiro de 1955, no qual Evaristo foi destacado para cumprir um papel revelador sobre sua versatilidade.

Naquele sábado à noite, Evaristo entrou em campo escalado na ponta-esquerda como parte de um quinteto ofensivo rubro-negro que trazia ainda Paulinho, Rubens, Índio e Benítez. Mas o Vasco, que também brigava pelo título, tinha como trunfo um Ademir Menezes já veterano, mas ainda infernal, querendo jogo, criando uma chance atrás da outra. Até que, aos 18 minutos, o Queixada fez fila na defesa rubro-negra e abriu o placar para os cruzmaltinos. Já naqueles primeiros minutos ele perigava ser o grande nome do clássico.

Fleitas Solich precisava de um antídoto. E, como era de seu feitio, ousou: decidiu deslocar Evaristo do ataque para que colasse em Ademir. Dali por diante, o craque vascaíno ganhou uma sombra e não andou mais em campo. Com a principal arma adversária sob estrito controle, inteiramente anulada, o Flamengo tomou para si as rédeas do jogo e chegou à vitória de virada por 2 a 1 com gols de Índio e Paulinho, levantando o título carioca por antecipação ao vencer todas as etapas do campeonato, como já havia feito no ano anterior.

Se a temporada de 1954 havia sido bem-sucedida no intuito de conquistar um espaço na equipe e de demonstrar seu potencial, em 1955 Evaristo se colocaria como um jogador de primeira linha no Flamengo e no futebol carioca e brasileiro. Valorizado pelo ótimo desempenho na campanha do bicampeonato, Evaristo teria seu contrato renovado em excelentes bases, o que lhe permitiria comprar um apartamento em Copacabana, que já se tornara na época o bairro turístico, boêmio e cosmopolita, cartão postal da então capital do país.

O Flamengo campeão carioca de 1955, com Evaristo de centroavante

A afirmação de um talento exuberante

Ao longo daquele ano, o atacante ainda faria grandes exibições em confrontos interestaduais e internacionais. Já em fevereiro, seis dias depois do jogo do título carioca, o Flamengo receberia o Estrela Vermelha, da Iugoslávia, para um amistoso no Maracanã, e em menos de dez minutos de jogo Evaristo marcaria os dois primeiros gols da vitória rubro-negra por 4 a 1. Mais adiante, entre abril e junho, ele seria instrumental em grandes vitórias do Flamengo, pavimentando seu caminho para reconhecimentos maiores que viriam em breve.

Primeiro, em 6 de abril, viria a tripleta na vitória por 3 a 1 sobre o Internacional no Estádio dos Eucaliptos, em Porto Alegre. Três dias depois, na abertura do Torneio Rio-São Paulo, ele marcaria duas vezes na goleada de 5 a 1 sobre o Santos no Maracanã. Ainda naquele mês, ele comandaria a virada sensacional do Fla sobre o Peñarol dentro do Estádio Centenário de Montevidéu, quando o time foi para o intervalo perdendo por 2 a 0, mas reverteu para 3 a 2 com dois gols dele e um de Índio, numa espécie de “troco” do Maracanazo de 1950.

Aliás, viradas desse tipo se tornaram comuns para o time naquele período: em 12 de maio, outra vitória com roteiro idêntico foi obtida nos cinco minutos finais diante do São Paulo no Pacaembu pelo Torneio Rio-São Paulo, também com dois gols de Evaristo e um de Índio. No mês seguinte, outro time uruguaio, o Nacional, seria vencido do mesmo jeito (3 a 2 de virada), mas no Maracanã. Por fim, em 19 de junho, no mesmo estádio, um gol quase sem ângulo de Evaristo selou a vitória de 1 a 0 sobre o Benfica pelo Torneio Charles Miller.

A excelente fase se estendeu pela primeira parte do Campeonato Carioca: nos 11 primeiros jogos, Evaristo balançou as redes nada menos que dez vezes, liderando a tabela dos artilheiros. Por essa época, foi convocado pela primeira vez à seleção brasileira, dirigida por Zezé Moreira, para a partida contra o Chile no Maracanã válida pela Taça Bernardo O’Higgins em 18 de setembro. No empate em 1 a 1, o atacante atuou ao lado do também rubro-negro Dequinha e teve, em seu setor, a companhia de outro estreante: Garrincha.

O momento favorável, no entanto, seria interrompido de modo abrupto pouco tempo depois, em 29 de outubro, na partida contra o Bangu pela segunda rodada do returno do Carioca. Já nos minutos finais da vitória por 2 a 0, na qual ele havia marcado o segundo gol, Evaristo arriscou uma finalização e acabou sofrendo ruptura dos ligamentos do joelho esquerdo. Era a segunda ocasião que uma lesão do tipo acometia um atacante do Flamengo naquele campeonato: um mês antes, Índio havia sido a vítima numa vitória sobre o Botafogo.

O tri da superação

As seguidas lesões de peças-chave do time, aliás, foram alguns dos muitos obstáculos enfrentados pelo Flamengo para chegar ao tri carioca. Outro foi o súbito falecimento do presidente do clube, Gilberto Cardoso, vitimado por um ataque cardíaco ao fim de uma dramática vitória do basquete rubro-negro na noite de 16 de novembro. Naquele certame, o Flamengo foi o vencedor da fase regular, que compreendia o primeiro e segundo turnos. Mas os seguidos abalos minaram o fôlego da equipe, que viu o America conquistar o terceiro turno.

A expectativa logo após a lesão era a de que Evaristo ficasse 40 dias fora. Porém, a recuperação tomaria mais tempo, e ele só voltaria no início de março de 1956, já na metade do terceiro turno. Felizmente, retornaria a tempo de reforçar o Fla na melhor-de-três decisiva contra o America. E seria o nome do primeiro jogo, destravando uma partida tensa até o último minuto com um chute despretensioso na direção do gol que acabou acertando o ângulo do goleiro Pompeia e selando a vitória por 1 a 0. Os rubro-negros largavam na frente.

“Foi um gol especial, que não esperava mais que acontecesse. É diferente marcar o único gol de um jogo decisivo. Foi uma felicidade muito grande. Talvez tenha sido o momento mais marcante da minha história no Flamengo, pois abriu o caminho para que conquistássemos o tão sonhado tricampeonato”, relembrou em entrevista. No segundo jogo, porém, o Fla foi surpreendido pelos rubros e goleado por 5 a 1. Mas se redimiu no terceiro confronto: venceu a revanche por 4 a 1 e enfim conquistou o segundo tri carioca de sua história.

Após o tri com o Flamengo, Evaristo embarcou para a Europa com a seleção brasileira, chamado por Flávio Costa para uma excursão do escrete. Em sete partidas, o Brasil venceu três, empatou duas e perdeu duas. Mas nas quatro em que contou com o atacante rubro-negro em campo, a seleção não foi derrotada. Sua melhor atuação foi no 1 a 1 com a Suíça em Zurique, quando entrou no intervalo e mudou o jogo para o Brasil, então atrás no placar: o gol do empate, marcado por Gino, veio inclusive no rebote de um chute seu.

Da excursão com a seleção, Evaristo emendou com outro giro europeu, mas pelo Flamengo. À parte das muitas goleadas aplicadas pelos rubro-negros nos jogos na Escandinávia (incluindo um 12 a 1 sobre os noruegueses do Brann), o ponto alto da viagem foi outra vitória sobre o Benfica, desta vez no portentoso Estádio da Luz, por 2 a 1, com Evaristo abrindo a contagem. Mas aquela temporada 1956 não seria feliz ao clube como haviam sido as três anteriores. Um somatório de problemas impediria o tetra, e o Vasco levaria o Carioca.

Houve, porém, alguns jogos marcantes naquela campanha, entre eles a arrasadora vitória por 12 a 2 sobre o São Cristóvão pela terceira rodada do returno, que permanece ainda hoje, quase 70 anos depois, como a maior goleada da história do Maracanã. O clube cadete vinha de resultados favoráveis surpreendentes, como uma vitória sobre o Bangu e um empate com o America. Mas acabou atropelado pelo time de Fleitas Solich naquela tarde de 27 de outubro. Evaristo foi o artilheiro do jogo, com cinco gols, um a mais que Índio.

Os memoráveis embates com o Honvéd de Puskás

Com Puskás e a taça colocada em disputa contra o Honvéd

O ano de 1957 reservaria grandes confrontos logo de saída, durante a temporada internacional, quando clubes estrangeiros visitavam o país fazendo amistosos. Logo em 6 de janeiro, o Flamengo recebeu os suecos do AIK no Maracanã e venceu por 5 a 3 com uma tripleta de Evaristo. Mas os duelos mais aguardados seriam contra o Honvéd, base da fenomenal seleção da Hungria campeã olímpica em 1952 e vice mundial em 1954, um dos grandes escretes da história do futebol, tendo como principal expoente o atacante Ferenc Puskás.

O Honvéd, aliás, chegou reforçado por nomes de outros clubes e que também haviam feito parte da seleção magiar, deixando a equipe menos com cara de clube e mais de escrete ou combinado. O Fla, por outro lado, teria a ausência de pelo menos quatro titulares, que estavam servindo à seleção carioca, além de outras dúvidas na escalação por lesão. Mas quando a bola rolou, essas baixas foram esquecidas: o time de Fleitas Solich simplesmente esmagou os húngaros no primeiro confronto, em 19 de janeiro, e venceu por 6 a 4.

Ao todo, seriam cinco jogos entre os dois times: dois no Maracanã, com vitórias do Fla por 6 a 4 e do Honvéd por 3 a 2; um no Pacaembu, onde os magiares devolveram os 6 a 4; e ainda duas no Estádio Olímpico de Caracas (Venezuela), com um triunfo rubro-negro por 5 a 3 e um empate em 1 a 1. Além do confronto entre esquadrões, houve ainda a batalha de artilheiros: Puskás deixou oito gols nas redes rubro-negras. Mas Evaristo, que marcou em todos os cinco duelos, anotou nove, incluindo uma tripleta na vitória do Fla em solo venezuelano.

Em meio a aquela série, Evaristo ainda formaria no combinado Flamengo-Botafogo que enfrentou os húngaros no Maracanã no dia 7 de fevereiro, na despedida do Honvéd no Brasil. Era o camisa 9 numa linha de ataque com três rubro-negros (Paulinho e Dida eram os outros) e dois alvinegros (Didi e Garrincha, deslocado para a ponta-esquerda). Na goleada do combinado por 6 a 2, Evaristo fez o cruzamento para Garrincha abrir o placar, anotou um gol de cobertura e outro concluindo uma linha de passe que deixou o Maracanã em êxtase.

Recordista pela Seleção

O Brasil nas Eliminatórias de 1957, com Garrincha, Evaristo, Índio, Didi e Joel

Quatro dias após o último confronto contra o Honvéd em Caracas, o Fla já estava em Montevidéu para um amistoso contra o Nacional uruguaio, sendo derrotado por 1 a 0. O que nem Evaristo nem a torcida rubro-negra sabiam é que aquele jogo teria tom de despedida para o atacante, que um mês depois embarcaria para Lima com a seleção brasileira, onde disputaria o Campeonato Sul-Americano (atual Copa América) e, na sequência, ficaria na cidade para o primeiro jogo das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1958 contra o Peru.

No Sul-Americano, Evaristo faria história. Passaria em branco na estreia, uma vitória de 4 a 2 sobre o Chile. Mas no jogo seguinte, contra o Equador, ele abriria e fecharia a goleada de 7 a 1. Porém, nada se compararia ao que ele faria apenas dois dias depois na partida contra a Colômbia, em 23 de março. Na goleada de 9 a 0, o atacante rubro-negro marcou cinco vezes, superando o recorde de gols num mesmo jogo pela seleção (quatro) instituído por outro rubro-negro, Zizinho, diante do Chile pela mesma competição, na edição de 1946.

A marca de Zizinho havia sido igualada duas vezes até ali: Ademir marcou quatro contra a Suécia na Copa do Mundo de 1950 e Julinho Botelho também fez quatro na Bolívia no Sul-Americano de 1953. Mas a de Evaristo não só as superava como até hoje não foi sequer igualada, passados 66 anos. O atacante ainda balançaria as redes contra o Uruguai, na derrota por 3 a 2 que deixou o Brasil mais distante do título. Mas nas Eliminatórias, a classificação acabaria vindo em dois jogos muito disputados contra uma forte seleção peruana.

A Blanquirroja tinha nomes históricos do futebol do país, como o bom goleiro Rafael Asca, o médio Victor Benítez (que defenderia o Boca Juniors e faria carreira na Itália em Milan, Inter e Roma), o talentoso meia Alberto Terry e o ponta Juan Seminario, que logo também faria carreira na Europa, atuando por Zaragoza, Fiorentina e Barcelona. Já o Brasil, treinado por Oswaldo Brandão, contava com um ataque que lembrava o combinado Flamengo-Botafogo: os rubro-negros Joel, Evaristo e Índio se juntavam aos alvinegros Didi e Garrincha.

Em Lima, no jogo de ida, houve empate em 1 a 1, com Índio marcando o gol brasileiro depois de os peruanos terem saído na frente com Terry. Na volta, no Maracanã em 21 de abril, o histórico gol de “folha seca” de Didi, que decretou o placar de 1 a 0 e carimbou o passaporte do Brasil para a Copa da Suécia, nasceu de uma falta sofrida por Evaristo perto da meia-lua. Seria, porém, o último jogo do atacante por aqui em muitos anos: no dia seguinte seria fechada sua venda ao Barcelona, que já o observava desde os jogos com o Honvéd.

Desbravando o futebol espanhol

Evaristo no time do Barcelona, entre Kubala e Luís Suárez

O clube catalão havia mandado o ex-craque Josep Samitier, então secretário técnico blaugrana, até Lima no intuito de fazer uma proposta a Evaristo. Como não tinha o passe preso ao Flamengo, exigência que fizera desde o primeiro contrato profissional, o acerto entre as partes foi rápido. “Acharam que eu tinha um perfil mais adequado ao futebol europeu”, relembrou Evaristo, que, no entanto, teve de abandonar o curso de Direito que fazia na Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas, na Praça da República, centro do Rio de Janeiro.

Na Catalunha, Evaristo chegaria com a temporada 1956/57 ainda em seu desfecho e, dessa forma, não podia atuar pelo campeonato. O clube, porém, fazia muitos amistosos, e num desses, contra o Saarbrücken, o atacante estrearia marcando um gol na vitória de 4 a 1 no velho estádio de Les Corts no dia 5 de maio. Ainda no meio do ano, ele voltaria à Venezuela para levantar a prestigiosa Pequena Taça do Mundo, na qual o Barça superaria Nacional de Montevidéu, Botafogo e Sevilla, com o brasileiro sempre de titular e marcando seis gols.

O início da temporada 1957/58 seria marcado pela inauguração no Camp Nou, o portentoso novo estádio do Barcelona. Evaristo participaria do jogo de abertura, em 24 de setembro, anotando um gol na vitória de 4 a 2 sobre um combinado de Varsóvia, e reencontraria os ex-companheiros do Flamengo, também convidado para os festejos (os rubro-negros goleariam o Burnley por 4 a 0 no estádio no dia seguinte). Ao longo daquela campanha, ainda se ambientando, Evaristo atuaria 29 vezes e marcaria 17 gols em jogos oficiais de competição.

Entre essas partidas estariam os confrontos pelas semifinais (contra o Birmingham City) e finais (contra o Combinado de Londres) da edição inaugural da Copa das Cidades com Feiras, a qual o Barcelona levantaria representando a seleção da cidade. Na partida de volta da decisão, disputada no Camp Nou em 1º de maio de 1958, Evaristo marcaria duas vezes na goleada de 6 a 0 sobre a seleção londrina. Mas nem tudo foi alegria na época. Se rendeu títulos e prestígio, a experiência europeia teve outro preço: a exclusão da seleção brasileira.

Evaristo deixara o Brasil como titular indiscutível a um ano do Mundial. Antes de viajar, procurara na CBD o supervisor Luís Vinhaes e o diretor Paulo Machado de Carvalho para se certificar de que a saída não o excluiria da Copa e recebeu respostas animadoras. O Barça, porém, viu o caso com outros olhos: como a Espanha não se classificara, a temporada por lá se estendeu até a poucas semanas do início do torneio. Quando enfim foi liberado, o atacante ouviu da CBD que o grupo de convocados de Vicente Feola já estava fechado.

Restou a Evaristo ficar com o clube disputando amistosos: em 29 de junho de 1958, enquanto o Brasil – com Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e seu ex-companheiro de Flamengo Zagallo – derrotava a anfitriã Suécia e levantava a Copa do Mundo pela primeira vez, ele estava na Holanda com o Barça, goleando o modesto Twente por 8 a 3 num jogo de intertemporada. Longe do olhar da seleção, Evaristo aproveitaria para marcar seu nome no coração dos blaugranas. Com a chegada do técnico Helenio Herrera, ele iniciaria sua melhor fase na Catalunha.

A temporada 1958/59 de Evaristo, já plenamente adaptado, seria bastante robusta: nos 25 jogos oficiais em que atuou, o Barça venceu 20 (incluindo todos no Camp Nou), e o atacante balançou as redes 22 vezes. Formando um ataque que contava, na maior parte dos jogos, com o ponta Justo Tejada, os húngaros Laszló Kubala e Zoltán Czibor e o armador Luís Suárez, o brasileiro se destacou em grandes goleadas em casa: anotou uma tripleta nos 4 a 0 sobre o Real Madrid e fez dois nos 6 a 0 no Valencia e nos 5 a 0 diante do Atlético de Madrid.

Em março de 1959, porém, uma lesão no joelho esquerdo sofrida contra o Osasuna o afastaria do restante da temporada. O Barcelona levantaria o título, mas Evaristo acabaria ultrapassado pelo madridista Alfredo Di Stéfano na artilharia, a qual liderara até se lesionar – a baixa seria até bastante lamentada pelo técnico Helenio Herrera, apesar da conquista. Porém, o êxito de Evaristo, um dos primeiros brasileiros atuando no futebol espanhol em mais de uma década, abriria portas para seus compatriotas no país a partir daquele ano.

Só do Flamengo tricampeão carioca, além de Evaristo, outros três jogadores migrariam para a liga espanhola: o ponta-direita Joel, campeão mundial com a seleção, desembarcaria no Valencia em outubro de 1958, quatro meses após o título na Suécia. Em março de 1959, seria a vez de o meia-direita Duca se juntar ao Zaragoza. Por fim, em setembro do mesmo ano, seria a vez do atacante Índio se transferir para o Espanyol. Além deles, o técnico rubro-negro Manuel Fleitas Solich seria recrutado pelo Real Madrid em meados de 1959.

Na inauguração do Camp Nou, o reencontro com os companheiros do Fla

Fazendo história no Barça

Na temporada 1959/60, aliás, Evaristo reencontraria Solich no Superclássico do primeiro turno, disputado em Chamartín (antigo nome do estádio Santiago Bernabéu) no dia 29 de novembro de 1959 – os merengues venceriam por 2 a 0. Mas, mesmo sem que o atacante tivesse desempenho tão espetacular quanto na campanha anterior – foram 32 jogos oficiais e 20 gols – o Barça levaria o bi da liga (superando o Real Madrid pelos critérios de desempate) e da Copa das Feiras diante do Birmingham City (mas sem Evaristo em campo).

A conquista maior, no entanto, escaparia: após eliminar com facilidade os campeões da Bulgária (CDNA Sofia, atual CSKA), da Itália (Milan) e da Inglaterra (Wolverhampton), o Barça pegaria o Real Madrid num duelo doméstico pela semifinal da Copa dos Campeões. Mais tarimbado no torneio, o time merengue (então já dirigido por Miguel Muñoz depois de Solich pedir demissão) passou à final vencendo ambos os confrontos por 3 a 1, com Evaristo atuando apenas na partida de volta, no Camp Nou. A eliminação derrubaria Helenio Herrera.

Os títulos espanhóis de 1959 e 1960 acabariam sendo os únicos levantados pelo Barcelona na liga dentro de um período de 20 temporadas (entre 1954 e 1973). Na temporada 1960/61, a equipe acabaria apenas na quarta colocação, a longínquos 20 pontos de um Real Madrid quase imbatível. Na Copa das Feiras, o tri também não veio – os blaugranas caíram para o Hibernian escocês nas quartas de final. Mas na Copa dos Campeões, os catalães cumpririam campanha brilhante, ainda que também terminassem sem levantar o caneco.

Na primeira fase, os belgas do Lierse foram eliminados sem sustos. Era o aquecimento para mais um Superclássico pela principal competição continental. E desta vez, os blaugranas triunfariam – e com participação decisiva de Evaristo. No jogo de ida, o Barça foi buscar duas vezes um valioso empate em 2 a 2 com gols de Luís Suárez (o segundo de pênalti, a três minutos do fim da partida) depois de o Real Madrid ter estado na frente primeiro com o meia Enrique Mateos e mais adiante com o ponta-esquerda Francisco Gento marcando.

Na volta no Camp Nou, os blaugranas saíram na frente no primeiro tempo com um gol do meia Martí Vergés. Mas a confirmação da vitória viria a oito minutos do fim graças a um gol antológico de Evaristo, mergulhando num peixinho sensacional para vencer o goleiro Vicente Train. Canário ainda descontou para 2 a 1 pouco antes do apito final, mas os madridistas não conseguiriam evitar a eliminação inédita na competição em que haviam imperado até ali. Os pentacampeões estavam fora enquanto o Barcelona avançava às quartas de final.

O gol antológico que eliminou o Real Madrid na Copa dos Campeões

O próximo adversário, o Spartak Hradec Králové, da Tchecoslováquia, foi superado sem maiores problemas. Mas o Hamburgo de Uwe Seeler seria um adversário bem mais duro nas semifinais. E de novo, o Barça contaria com Evaristo para destravar a série. No Camp Nou, o brasileiro decidiu a vitória catalã por 1 a 0. Na volta, os alemães deram o troco e venceram por 2 a 1. As duas equipes seguiram então para um jogo desempate em Bruxelas. E de novo Evaristo seria decisivo ao anotar o gol de outra vitória por 1 a 0, que valeu a classificação.

A final seria contra o Benfica no estádio Wankdorf, em Berna. Evaristo atuou como centroavante na linha de ataque que incluía Kubala, Sándor Kocsis, Luís Suárez e Czibor. O Barça saiu na frente com Kocsis, mas o Benfica virou para 3 a 1 numa partida muito ruim do goleiro Antoni Ramallets. Mas pior mesmo foi a falta de sorte: os catalães acertaram nada menos que quatro vezes (duas no mesmo lance) as traves, que eram quadradas – ou seja, a bola batia e voltava, em vez de entrar. Czibor ainda diminuiu, mas o Benfica venceu por 3 a 2.

Na soma de competições, a temporada seguinte, a de 1961/62, seria sua mais goleadora em jogos oficiais: foram 28 gols em 30 jogos. Pela liga, sua ótima média de 20 gols em 22 jogos, no entanto, seria insuficiente para alcançar os 25 tentos do goleador daquele ano, o peruano Juan Seminario, do Zaragoza, o mesmo que a quem enfrentara pelas Eliminatórias de 1958. Esse poder de fogo, no entanto, não se traduziria em títulos: o Barcelona passaria mais uma vez em branco naquela que seria a última temporada de Evaristo no clube.

A passagem por Madri

No ataque do Real Madrid de 1963, ao lado de Amancio, Félix Ruiz, Puskas e Gento

Havia tanto da parte do Barcelona quanto da federação espanhola o interesse de que Evaristo se naturalizasse a fim de defender a seleção da Espanha no Mundial do Chile e de liberar uma vaga de estrangeiro no elenco catalão. O atacante concordou contanto que não perdesse a cidadania brasileira. Como essa possibilidade só se aplicava a descendentes de espanhóis (o que não era seu caso), não houve acordo. Com o fim de seu contrato com o Barça se aproximando, Evaristo decidiu não renová-lo, encerrando seu ciclo na Catalunha.

Em cinco anos no Barcelona, Evaristo balançou as redes ao todo 181 vezes em 237 jogos, sendo 105 gols em 151 partidas oficiais, número no qual é superado, entre os brasileiros, apenas por Rivaldo, que fez 129 gols em 235 jogos de competição. Na média de gols por jogos, entretanto, Evaristo ainda supera qualquer brasileiro que tenha atuado ao menos 50 vezes pelos blaugranas, incluindo Ronaldo, Romário, Ronaldinho Gaúcho, Neymar e o próprio Rivaldo. Em títulos, foram duas ligas e duas Copas das Cidades com Feiras.

Vale lembrar que, durante seu período na Catalunha, o Barça conquistou por duas vezes a copa nacional (em 1957 e 1959), mas a restrição à utilização de atletas estrangeiros no torneio impediu que Evaristo tomasse parte nas campanhas vitoriosas. O brasileiro vestiu a camisa blaugrana pela última vez num amistoso contra o Mantova, da Itália, em 14 de junho de 1962. E logo assinou com o Real Madrid, em transferência já especulada há algum tempo, já que os merengues não condicionavam sua contratação à naturalização espanhola.

Aos 29 anos, era hora de mudar de ares. “Para falar a verdade, quando acabou meu contrato com o Barcelona, meu desejo era voltar logo ao Brasil. Mas o Real Madrid apareceu com uma proposta irrecusável e o remédio foi adiar um pouco mais aquilo que eu e minha mulher estávamos querendo há muito tempo”, declararia o atacante ao Jornal do Brasil em outubro de 1964. Porém, seu período com os merengues seria prejudicado por um problema crônico de joelho sofrido ainda em seus últimos dias defendendo o Barcelona.

Embora conquistasse mais dois títulos espanhóis e participasse da campanha que levaria o Real Madrid a mais uma final da Copa dos Campeões em 1963/64 (na qual o time seria derrotado pela Internazionale), Evaristo entrou em campo com menos frequência. Na primeira temporada, foram só sete jogos e três gols. Na segunda, 12 jogos e dois gols, um deles pelo torneio europeu, num 6 a 0 contra o Rangers. Em meados de 1964, Evaristo já manifestava o desejo de retornar ao Brasil para cuidar de seus negócios no país e da saúde de seu pai.

O retorno ao Flamengo

Já veterano, de volta ao Flamengo em 1965

O empecilho era o ano de contrato ainda por cumprir. Mas, após longas conversas com os cartolas merengues, o brasileiro conseguiu que seu compromisso fosse rescindido e até recebeu do clube o valor referente aos sete meses restantes, como prêmio pelos serviços prestados. Seu destino no futebol brasileiro não poderia ser outro: quando pensava em voltar, só se imaginava jogando de novo pelo Flamengo. Em 27 de outubro de 1964, ele reapareceu na Gávea para treinar e, após a atividade, assinou um contrato em branco com o clube.

Como não poderia mais ser inscrito no Campeonato Carioca, sua participação naquele restante da temporada se limitaria aos jogos da Taça Brasil, competição em que o Fla entrou nas semifinais e teve o Ceará como primeiro adversário. A reestreia de Evaristo, porém, seria em circunstâncias tensas: ele entrou no decorrer da partida de ida, no dia 8 de novembro em Fortaleza, no lugar do meia Nelsinho, que havia fraturado a perna num choque com um adversário. O Flamengo passou pelos cearenses, mas perdeu a final para o Santos de Pelé.

No ano seguinte, Evaristo atuou mais vezes: foram 21 jogos, sendo 13 como titular, e três gols – um deles na Espanha, na vitória de 3 a 0 sobre o Betis pelo Troféu Ramón de Carranza. Porém, ele não chegou a participar de nenhum jogo da campanha vitoriosa no Carioca de 1965. Já um tanto desmotivado, perto dos 33 anos, Evaristo decidiria pendurar as chuteiras em abril de 1966, na volta de uma excursão ao Equador. Com 181 jogos e 102 gols pelo Flamengo na soma de suas duas passagens, já considerava sua missão cumprida.

Logo após encerrar a carreira de jogador, Evaristo iniciaria a de treinador, longeva e vitoriosa, com títulos e resultados expressivos no Brasil e no Oriente Médio, angariando admiração em outros clubes assim como fizera no Flamengo (onde foi homenageado como um gigante de sua história), no Real Madrid (cujo site oficial o relaciona como uma “lenda do futebol” a passar pelo clube) e no Barcelona, onde a célebre foto do gol de peixinho que eliminou o Real na Copa dos Campeões em 1960 aparece imensa logo na entrada da sede.

Foto de Emmanuel do Valle

Emmanuel do Valle

Além de colaborações periódicas, quinzenalmente o jornalista Emmanuel do Valle publica na Trivela a coluna ‘Azarões Eternos’, rememorando times fora dos holofotes que protagonizaram campanhas históricas.
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