Copa do Mundo

Na Vila Madalena, a multidão mais animada foi a militar

Quando cheguei ao cruzamento da Inácio Pereira da Rocha com a Mourato Coelho, a poucos metros do coração da Vila Madalena, suei mais frio do que o David Luiz, do Brasil, vendo a aproximação do Toni Kroos, da Alemanha. Pensei: “Má idéia, má ideia, má ideia”. Havia centenas de policiais na rua, carros da PM subindo e descendo a Inácio. Já previ as famosas #cenaslamentáveis de brasileiros e argentinos quebrando os respectivos dentes, bares quebrados, arrastões por toda a zona oeste de São Paulo. Aproveitei minha cara de gringo e perguntei a um policial, que parecia amistoso, se eu deveria continuar. Fui absolutamente cuidadoso ao me aproximar do pelotão, já que os outros soldados pareciam mais tensos do que Mascherano na partida contra a Holanda. Pareciam animados para uma grande ação. “Pode seguir”, ele disse. “Está tudo bem?”, reforcei. “Por enquanto, sim”, ele cravou, como se estivesse esperando algo grande acontecer. Eu fui.

E AGORA? Copa foi um sucesso, mas pensamento mágico é perigoso

Felizmente, para mim, as #cenaslamentáveis não estavam lá. Talvez infelizmente para aqueles policiais que esperavam se despedir da vila com alguma ação depois de tantos dias tão animados. Mas, tal qual a personagem do livro “O Deserto dos Tártaros”, do escritor italiano Dino Buzzati, nada aconteceu. Enquanto eu estive ali, a vida dos policiais foi esperar que o nada virasse alguma coisa.

Depois de passar pela barreira policial, tive a impressão de que a Vila Madalena estava passando por aquele momento em que as oferendas voltam do mar, no primeiro dia do ano. Era uma ressaca sem fim. As pessoas estavam na Vila, mas sem cantar, sem gritar. Estavam lá mais por hábito do que por animação. Era bem diferente da primeira vez em que eu tinha ido à Vila Madalena, nesta Copa que acabou de dizer adeus. Naquele dia de Brasil contra Camarões, eu mal podia andar pelo miolo do bairro. Era no passo do pinguim, um pouco de cada vez, escutando frases sensuais na linha “vem aqui, alemão” (ninguém mandou ter pouca melanina no corpo), testemunhando pessoas fazendo pirocoptero com chuva dourada no amiguinho e vendo alguns cowboys prestes a laçar as meninas. Era loucura e delírio, como escrevi no texto sobre o buraco negro da vila. Neste domingo, não.

VILA MADALENA: Com loucura e delírio, bairro virou buraco negro na Copa

As pessoas comemoraram o título da Alemanha, tiraram um sarro simples da Argentina, e foi só. O famoso cruzamento da rua Mourato Coelho com a Aspicuelta, um dos símbolos turísticos, etílicos e loucuricos deste Mundial, estava bem povoado. Nada, porém, que pudesse ser comparado ao bebe e encoxa, muitas vezes agressivo, dos outros dias de festa. Havia muita polícia espalhada, muito espaço entre as pessoas, um beijo empolgado aqui, uma paquerada ali, mas nada de impressionante – nem para o bem nem para o mal. Tive a sensação de que alguma coisa estava secando. Se você já teve plantas em casa, talvez saiba do que estou falando: você tenta mantê-la viva, mas parece que o problema não está no adubo, na água, no cuidado. Era hora de morrer, mesmo.

Alemães no Instituto Goethe:  hoje a festa é sua (Foto: Leandro Beguoci)
Alemães no Instituto Goethe: hoje a festa é sua (Foto: Leandro Beguoci)

A aglomeração mais lembrava um domingo animado em São Paulo do que a despedida da Copa na qual a Vila Madalena, apesar dos problemas, se tornou um dos lugares mais animados do Brasil. A ressaca caiu sobre o bairro. Antes de ir para lá, pensei que fosse encontrar milhares de pessoas fazendo de tudo para ter a última noite animada de Mundial. Mas, não. Parece que o 7 a 1 secou o ânimo da rapaziada. A alguns metros do miolo, bares com mesas desocupadas. O Filial e o Genésio, dois dos pontos mais tradicionais do bairro, estavam confortáveis. Sem filas, era possível escolher lugar, pedir seu petisco favorito, conversar sem levantar a voz.

Sai da Vila e fui ao Instituto Goethe, um centro tradicional de cultura alemã em São Paulo. Passei de novo pela barreira policial, e de novo me deu um frio na barriga instintivo. Entendo que havia medo de confusão, entendo que as coisas saíram do controle na Vila por algumas muitas noites. Mas, infelizmente, morar em São Paulo é viver com essa sensação de que, se há polícia, há motivo para ter medo. Você tem a sensação de que alguma coisa muito ruim está prestes a acontecer – e por tantos, tantos, tantos motivos que eu tomaria todo o seu tempo deste final de domingo para explicar. Por isso, vamos adiante. Ali, no Goethe, não tinha polícia.

O instituto fica no final de uma rua sem saída, em frente a um bar colombiano. Quando sai da Vila, tive a sensação de o excesso de polícia poderia ter contagiado as pessoas. O medo de um pescotapa, afinal, é considerável com aquela quantidade grande de policiais.  Portanto, logo na esquina do Goethe, achei que as pessoas fossem estar mais animadas – não havia sinal de PM. Me enganei. Talvez a polícia até tenha alguma influência no desânimo da Vila Madalena, mas certamente não foi o fator principal. Eles estavam animados, andando por todos os lados, mas se comportaram bem, até onde pude ver.  Quando finalmente cheguei às portas do  instituto, longe do bloqueio da PM, as pessoas estavam amuadas. Os brasileiros podemos até ter torcido contra a Alemanha, mas não conseguimos disfarçar a sensação de que algo saiu muito errado, dentro de campo, neste Mundial.

As pessoas estavam ali, na delas, encostadas nos muros, sentadas nas sarjetas, como se alguém tivesse acabado de tirar de cada uma delas algo do qual elas gostavam muito. Dentro do Goethe havia uma festa de música eletrônica, uns alemães comemorando com o dedinho pra cima, uns brasileiros com a camisa do Müller… E foi isso ai. Por mais que a alegria de derrotar a Argentina estivesse no ar, restava uma frustração até entre os mais convictos brasileiros germanizados neste domingo. Éramos coadjuvantes da festa que ajudamos a organizar.

ANTES DA FINAL: Vila Madalena viveu clima de provocação sadia entre brasileiros e argentinos 

instituto goethe

Voltei para casa. A cidade estava em silêncio. Só os entregadores de pizza pareciam enlouquecidos, correndo de um lado para o outro com um monte de entregas para fazer. Somos uma cidade que bebe para esquecer e come pizza para evitar a ressaca. As freadas dos entregadores denunciavam a volta da normalidade, da gigantesca normalidade. Afinal, a próxima grande festa na rua será o Carnaval de 2015. Gringos em profusão? Só no aeroporto. Os prédios, que tinham se levantado na hora do gol da Alemanha, emitiam uma ou outra cornetada abafada, talvez com a boca cheia de pizza. As ruas e as avenidas estavam acabrunhadas, como se estivessem se contorcendo com o frio de julho recém-descoberto. Essa clima de depressão deixava a presença maciça da polícia na Vila ainda mais desconfortável. Parecia uma demonstração excessiva de força diante de uma cidade derrotada pela tristeza.

Porque, ao menos na zona oeste de São Paulo, as pessoas não conseguiram disfarçar a melancolia pelo fim da Copa. Ela foi embora e deixou as ruas vazias, a polícia agitada e a sensação de que dificilmente se viverá outro momento como este na cidade no futuro próximo. Foi um torneio de sentimentos extremos – a suprema surpresa com o Mundial no Brasil e a máxima depressão com a goleada para a Alemanha. Não houve sentimentos mornos nem sensações pela metade. Agora, é hora de lidar com a tristeza em sua máxima expressão, como na “Marcha da Quarta Feira de Cinzas”, de Vinicius de Moraes. Não há nada maior lá na esquina, esperando para acontecer.

“Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais
Brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas
Foi o que restou”

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